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Delito de Opinião

Para encher a barriga

Pedro Correia, 29.06.14

 

Manhã muito cedo, já o pescador veio aviado. Traz um carregamento de peixe que vai amanhando e atirando para um grande balde. Com gestos mecânicos e expeditos, serve-se da faca para lhes retirar as vísceras, que deposita ali, nas águas plácidas da ria. As incisões são feitas a bom ritmo e com precisão cirúrgica: não tarda, o balde vai enchendo.

O homem prossegue a tarefa, imperturbável. Está descalço, de pés plantados na ria, calças de ganga arregaçadas. Esquarteja ferreiras e besugos que daqui a poucas horas estarão estendidos nas grelhas.

O sol já se ergueu acima da linha dos telhados, o calor aumenta, a faca prossegue o seu curso na mão direita do homem, seco e tisnado. Há um frenesim de gaivotas em seu redor: disputam as vísceras dos peixes numa atmosfera de solene algazarra. As mais possantes afastam a concorrência à força de bicadas, o alarido de umas depressa atrai as atenções de outras que logo se aproximam.

Mas não parece haver necessidade de lutas: o petisco chega para todas.

 

Da marginal de Cabanas, uma senhora pergunta ao pescador a como lhe vende o peixe. O homem informa-a sem sequer a olhar nem abrandar o ritmo: extrai as entranhas, lava o peixe e atira-o para o balde.

A senhora aproxima-se, interessada, já de nota na mão.

"Eu quero aquele maior para encher a barriga", diz-lhe, apontando com o dedo. O peixe recém-pescado salta do balde para um saco de plástico em poucos segundos. O homem prossegue o seu labor, imperturbável. As gaivotas navegam à sua volta, como se fossem patos num inquieto alvoroço. A senhora regressa à marginal em passo pausado por força conjugada da idade e do calor.

Espreita o saco: o peixe é grande. O almoço de hoje está garantido, amanhã logo se vê.

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