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Delito de Opinião

Outras galáxias muito distantes (1)

João Campos, 14.12.17

Apesar da ideia que se possa retirar da televisão, do cinema e da Internet por estes dias, na ficção científica a chamada space opera não se resume a Star Wars (ou a Star Trek, já agora). Pese embora a sua popularidade, a franchise multimilionária criada por George Lucas em 1977 está a anos-luz de ser o pináculo criativo ou conceptual de um género que, muito antes de encantar nas salas de cinema, já encantava nas páginas das pulps norte-americanas. Para quem quiser descobrir galáxias tão ou mais fascinantes na literatura e na banda desenhada, aqui deixarei algumas sugestões de leitura ao longo dos próximos dias.

 

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 Saga

Uma odisseia familiar

 

Não seria incorrecto se descrevesse Saga como um cruzamento entre a space fantasy de Star Wars numa versão para adultos e a tragédia familiar de Romeu & Julieta. De facto, a a trama escrita por Brian K. Vaughan e ilustrada por Fiona Staples tem lugar num universo ficcional onde naves espaciais convivem sem dissonância com formas de magia e de misticismo, e toda a acção decorre do amor improvável entre dois soldados de facções inimigas num conflito de dimensões galácticas. Mas, não sendo incorrecta, esta descrição pecará por ser demasiado redutora: as semelhanças tanto com a série de filmes iniciada por George Lucas como com a tragédia escrita por Shakespeare terminam logo nas primeiras páginas da banda desenhada com o nascimento de Hazel, filha da relação proibida entre Alana, nativa do planeta Landfall, e Marko, oriundo da lua de Wreath. Perseguida por ambas as facções e pelos vários grupos a elas associados, a recém-formada família enceta uma fuga pela galáxia, procurando proporcionar a Hazel uma infância tão normal quanto possível - e por normal entende-se aqui um foguetão-árvore enquanto casa, uma babysitter fantasma, amizades incertas e inimigos determinados. 

 

Autores menos experientes (talentosos) começariam a história pelo infodump clássico para estabelecer as origens do conflito, as facções, o alastrar da guerra, os protagonistas. Vaughan, porém, não perde tempo com os clichés do costume: Hazel nasce, Alana e Marko estão em fuga, e todo aquele universo abre-se perante o leitor numa trama especialmente bem urdida, onde o frenesim da perseguição se alterna com pequenos momentos familiares. Quem apreciar as aventuras espaciais pela acção sentir-se-á em casa nas páginas de Saga, mesmo que nelas não abundem os intensos combates de naves que tanto sucesso fizeram (fazem) no cinema: a história segue sempre a bom ritmo, as peripécias e as reviravoltas sucedem-se sem perder de vista as persongens complexas e ambíguas que a atravessam. Mas Saga é mais do que a aventura: por entre as peripécias galácticas de Alana, Marko e Hazel, Vaughan vai tecendo algumas reflexões sobre a diferença e o preconceito, sobre a futilidade da guerra e os fantasmas que esta deixa, e sobre questões familiares raramente abordadas na tradição dos comics norte-americanos. Ou, pelo menos, raramente abordadas de forma simultaneamente aventureira e intimista.

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À mestria narrativa de Vaughan junta-se a ilustração assombrosa de Fiona Staples, repleta de vivacidade, a alternar entre os planos mais vastos e os momentos mais intimistas sem nunca perder o pé. Os seus alienígenas são expressivos, diversos e fascinantes, parte integrante da trama em curso e não apenas um cenário glorificado para meia dúzia de cenas - alguns, como o "Lying Cat", já conquistaram o seu lugar no imaginário da cultura popular contemporânea. Prova viva de que a banda desenhada não é apenas um mero texto ilustrado mas uma simbiose entre a palavra e a imagem, a arte de Staples dá toda uma nova dimensão à trama, conferindo a todo aquele universo uma cor sem paralelo. E mais do que isso: uma sensualidade rara neste formato. Disse no início do texto que Saga seria algo como "Star Wars para adultos", e não me referia apenas à profundidade e à pertinência do texto e da mensagem de Vaughan mas também ao arrojo do desenho de Staples, sem tabus e em momento algum gratuito ou desnecessário. A capa da primeira edição, que ilustra este texto, é disso um óptimo exemplo, e gerou a sua dose de polémica à data de publicação (mesmo estando longe de ser uma imagem explícita, ou mesmo a imagem mais explícita desta banda desenhada).

 

Com o primeiro capítulo publicado pela Image Comics em 2012, Saga encontra-se ainda em publicação - se formos contabilizar as colectâneas em paperback, está actualmente no sétimo volume, com oitavo a ter publicação prevista para o início de Janeiro próximo. Felizmente, vivemos uma pequena época de ouro para a banda desenhada em Portugal (algo que não acontece com a literatura deste género), tanto em edições nacionais como nas edições traduzidas, e Saga está a ser publicada por cá pela G Floy Studios em boas edições e bom preço. Seja no original ou em português, é-me impossível recomendá-la mais: no que à space opera contemporânea (ou space fantasy, se quisermos ser picuinhas com a terminologia) diz respeito, Saga é uma obra ímpar.

 

(Para os leitores que possam querer uma sugestão de banda desenhada nestes temas, mas menos atrevida, que sirva de prenda de Natal para os mais novos, recomendo Valérian, que a reboque do filme que estreou no Verão até está a ser reeditada por cá: é um clássico, é divertida, e ainda que aqui e ali esteja algo datada, em alguns aspectos continua à frente do seu tempo. Saga, sendo extraordinária, não é de todo uma banda desenhada para crianças)

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