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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (49)

Pedro Correia, 20.02.16

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O DESCONHECIDO DO NORTE EXPRESSO:

A VIDA É UM CARROCEL

 

Alfred Hitchcock terá dito certa vez que um filme seria tanto melhor quanto pior fosse o vilão que lá surgisse. A frase tornou-se lendária, como tantas vezes sucedeu com o cineasta do suspense. Mas quer tenha sido ou não proferida por ele, ilustra na perfeição um dos habituais ingredientes do cinema que traz a sua matriz. E a poucos filmes ela se adequa tanto como à sua primeira obra-prima dos anos 50, a primeira de muitas, numa época em que o mestre só se sentia realizado quando conseguia causar calafrios à audiência.

O Desconhecido do Norte Expresso adapta, sem o decalcar, o romance de estreia de Patricia Highsmith – escritora hitchcockiana por excelência, nascida na década em que o realizador britânico se iniciou no cinema. E conta com argumento de Raymond Chandler, génio da novela negra. Deste trio de talentosos escrutinadores dos labirintos da natureza humana só poderia irromper uma película inesquecível. E assim aconteceu.

 

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O filme diz logo ao que vem: apresenta-se sob o signo da dualidade. Há duas personagens a preencher a tela, mas não lhes vislumbramos os rostos: são-nos reveladas pelos respectivos sapatos – dois pares, portanto. É uma das mais originais cenas de abertura em toda a vasta filmografia de Hitchcock, em toda a história do cinema.

Uns sapatos são banais, como se quisessem passar despercebidos; os outros desesperam por dar nas vistas. Funcionam na perfeição como cartões de apresentação de Guy Haines, o tenista em ascensão que gostaria de trocar a esposa suburbana pela filha de um poderoso senador em Washington sem ser alvo das colunas de mexericos na imprensa, e Bruno Anthony, o diletante filho de um ricaço que sonha com o dia em que se libertará do fantasma edipiano ao herdar a fortuna do papá.

Perfeitos desconhecidos um para o outro que só o acaso de um encontro fortuito numa carruagem de comboio acabará por colocar frente a frente. E não tardaremos a distingui-los: o desportista é um aparente galanteador que usa as mulheres para trepar no elevador social; o candidato a herdeiro é um misógino dominado pela mãe, que o afasta das companhias femininas.

Um quer afugentar a sombra da mulher com quem ainda está casado, o outro ambiciona ver-se livre do pai tirano que pretende transformá-lo num homem que nunca será. Pode o crime perfeito resultar de duas motivações cruzadas, como se os assassinos trocassem de identidade e mudassem de pele?

 

Nunca o tema da ambivalência moral, a pretexto de um par de homicídios, foi exposto com tanta clareza por Hitchcock como neste seu filme que começa num ritmo deliberadamente pausado e vai acelerando de forma progressiva mas irreversível até culminar na vertiginosa sequência final, não por acaso passada num carrocel.

Quem afinal acelera toda a trama é o indolente e quem procura retardá-la é o suposto homem de acção – novamente a dualidade em cena, novamente surgindo da forma mais inesperada pela mão de um cineasta que adorava sobressaltar as plateias, abalando por imagens as sólidas certezas instaladas nos espectadores. Ao ponto de nos interrogarmos se o culpado será inocente e se o inocente será culpado.

 

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Para a perenidade desta película em que as mulheres comparecem quase só enquanto pano de fundo (e uma delas, em versão antagónica de femme fatale, é a própria filha do realizador, Patricia Hitchcock) muito contribuiu a perfeita escolha do par masculino. Farley Granger é Guy, Robert Walker é Bruno. Tão amorais ambos, cada qual à sua maneira. Mas tão diferentes como os sapatos que calçam. O primeiro tolhido pelas conveniências sociais, o outro fazendo questão em zombar delas.

Bruno parece o mais fraco, mas atenção às aparências: elas costumam iludir-nos. Reparem como ele começa por pedir um uísque duplo (a dualidade presente nos pormenores supostamente mais irrelevantes) enquanto Guy recusa qualquer bebida alcoólica. Mas o tenista não tardará a imitá-lo como insecto enredado numa teia. Bruno-aranha envolve-o e escrutina-o a um ponto que somos capazes de supor mas só ele próprio, no mais íntimo da sua consciência, poderá saber.

Neste jogo de ilusões quem parece fútil e diletante será afinal o mais forte? Hitchcock, avesso às mensagens envoltas em palavras, prefere dar-nos uma pista visual. Joga-se uma partida de ténis, as bancadas estão cheias de espectadores. Todos os pares de olhos seguem a trajectória da bola, excepto um: Bruno lança a Guy uma mirada fixa e obsessiva, como criador observando a criatura. Cena antológica de Hitchcock, o cineasta que recorria a espelhos côncavos para perscrutar a alma humana. Há várias outras nesta longa-metragem: as silhuetas projectando-se como ameaças veladas no "túnel do amor", o cigarro apagado no balão da criança, o crime que vemos cometido nos óculos partidos da vítima.

 

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Aqui a ficção entronca com a realidade. Farley Granger - tão bem escolhido para encarnar o hesitante Guy - mal se distinguia de qualquer intérprete de gama média nos estúdios de Hollywood enquanto o volátil Robert Walker era assombroso frente às câmaras, na proporção inversa das crises existenciais que o dilaceravam longe delas. O Desconhecido do Norte Expresso não teria um sopro de génio tão intenso sem a interpretação desmedida deste depressivo crónico que se entregava a cada desempenho como se fosse o último.

A biografia de certos actores é um carrocel, por vezes tão alucinado como o que gira no final deste filme capaz de esconder muito do que na aparência mostra. Walker morreu pouco mais de um mês após a estreia. Inesperada morte que talvez não surpreendesse ninguém.

Interrogo-me se naqueles instantes finais terá guardado o isqueiro de Guy como aconteceu com Bruno, tão bom a fazer de mau – a vida imitando a arte até ao derradeiro cair do pano.

 

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O Desconhecido do Norte Expresso (Strangers on a Train, 1951). De Alfred Hitchcock. Com Farley Granger, Ruth Roman, Robert Walker, Leo G. Carroll, Patricia Hitchcock.

 

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