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Delito de Opinião

O cinema a despir a religião

João André, 03.11.14

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Uma tendência recente em Hollywood é a de voltar a temas religiosos e míticos, umas vezes criando novos objectos, outras simplesmente refazendo-os. Infelizmente, uma tendência crescente destes filmes é tentar uma desconstrução do tema, por exemplo despindo-o dos elementos que o tornam míticos (Tróia sem deuses é um exemplo) ou acrescentando outros elementos desconhecidos de forma a humanizar as personagens (o Noé do filme é consideravelmente diferente do da Bíblia).

 

Obviamente que não argumento existir uma única forma de abordar um tema - qualquer tema. Tão pouco ignoro que a escolha de determinadas histórias é propositada para poder fazer o exercício de reflexão sem ter de criar um cenário inicial. Em Noé, o estudo sobre o tipo de pessoa que a personagem bíblica seria, de um ponto de vista humano, é simplificado por não ter de se explicar em demasiado qual o contexto da história. Estamos à partida parcialmente familiarizados com Noé e o Dilúvio, pelo que não se torna necessário explicar muito. Já se o objecto deste estudo de Aronofsky tivesse sido Abraão (na minha opinião, mais adequado às conclusões finais), a sua história teria de ser explicada em detalhe, uma vez que seria menos conhecida de quem não esteja familiarizado com a Bíblia.

 

Seja como for, penso que despir um filme dos elementos mais básicos da sua história o torna menos forte no tema que aborda. Um dos principais aspectos dos filmes baseados em religiões é o imaginário que evocam. Visualmente estes filmes deveriam ser imediatamente impressionantes. Não é por acaso que Lawrence da Arábia, não sendo um filme religioso, evoca esse imaginário retratando T.E. Lawrence como uma figura semi-mitológica. Também não é por acaso que autores ateus como Pasolini, o próprio Aronofsky, Buñuel, Rossellini ou John Huston sempre estiveram fascinados pelo imaginário - e visual - religioso. É também por isso que filmes fiéis a esse imaginário continuam a ser hoje em dia fascinantes, mesmo para ateus como eu. E é por isso que quando os filmes tentam humanizar ou contextualizar as acções divinas com explicações seculares, o cinema só tem a perder.

 

Abordo este tema por duas razões: primeiro porque, segundo leio, Ridley Scott pretende, no seu novo filme Exodus (nova variação sobre a história de Moisés baseado no mesmo livro da Bíblia) criar explicações cientificamente mais aceitáveis para os milagres (segundo parece, um terramoto explicaria a passagem do Mar Vermelho). Por outro lado vamos vendo hoje uma muito pobre exploração da imagética religiosa usando e abusando das CGIs, sendo um exemplo o filme de Aronofsky ou Imortais, de Tarsem Singh. Estes dois filmes, sendo visualmente muito interessantes (especialmente o segundo), são também preguiçosos, deixando de lado a fotografia para usarem a solução mais básica do digital. Veja-se a diferença de imagens entre o filme de Aronofsky e o de Huston (em A Bíblia, a encimar o post). o segundo retrata a arca contra o sol, mostrando claramente a chegada dos animais em pares e de forma ordeira, como Deus ordenaria. No segundo, temos uma arca estranha, num panorama preguiçoso e com os animais a chegar em debandada, como que a mostrar a qualidade da reconstrução digital.

 

Hollywood pode estar de facto a tentar aproveitar o filão aberto por Ridley Scott com a sua recriação dos filmes de espadas e sandálias (Gladiador), os quais serão uma tentativa de explorar o desejo de temas simples e transcendentais, longe do frenesim da modernidade e secularidade (as razões deste ressurgimento darão certamente muitas teses de doutoramento). No entanto, do ponto de vista artístico, penso que estes filmes só terão a perder na comparação com os clássicos do passado. Aquilo que ficou perfeito não deve ser recriado. As cópias saem sempre a perder.

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