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Delito de Opinião

"Nada retoma a forma antiga"

Luís Naves, 20.08.16

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Uma frase

“Não faz sentido imaginar isso [coligação com o PS]. António Costa está, e está para durar. Chegou ao poder da forma como chegou. Quem chega ao poder assim, fará tudo para lá continuar. Não tenho nada a ideia de que isto esteja quase a acabar, não vou fazer cenários. No CDS vemo-nos como oposição ao Governo das esquerdas e como parceiros do PSD”.

Assunção Cristas, líder do CDS

18 de Agosto de 2016

Revista Sábado

 

Um post

Francisco Seixas da Costa explica as implicações legais de um caso raro: os dois filhos do embaixador iraquiano espancaram um jovem em território nacional e poderão ficar impunes.

 

A semana

Domingo, 14 de Agosto de 2016

No recomeço da temporada política da oposição, com o tradicional discurso do líder do PSD no Pontal, o mandarinato do comentário não se cansou de sublinhar dois pontos: o PSD anda farto do seu líder e o discurso da oposição é pessimista, faltando-lhe a parte da esperança. Passos devia ter subido ao palanque para dizer que está tudo bem e que o primeiro-ministro é um formidável estadista. Sobre a sua substituição, não se conhece um único facto, mas todos dão isso como adquirido ou inevitável: haverá intrigas, movimentações misteriosas, mas nem sequer se sabe quem se movimenta nos bastidores e quem será o possível substituto. Nenhum dos analistas explica o óbvio, que as sondagens não seriam as mesmas em caso de ruptura da aliança da esquerda e que dificilmente as próximas eleições serão as autárquicas de 2017, nas quais, de facto, o PSD pode levar uma banhada, pelo menos em Lisboa e Porto.

 

Segunda-feira, 15 de Agosto de 2016

O Governo minoritário do PS vai durar dois anos? Pela amostra dos primeiros oito meses, não parece. A economia cresce a metade do ritmo previsto, mas acredita-se numa execução orçamental espectacular. Os parceiros europeus vão fiscalizar as contas de três em três meses e mantêm ameaças de sanções e cortes de fundos, mas a malta da esperança acha que podemos confiar numa negociação favorável. A dívida pública cresceu em vez de diminuir, o Governo recusa aplicar medidas adicionais pedidas por Bruxelas, mas há esperança. As taxas de juro negativas atingem já os bancos alemães, mas espera-se que as políticas do BCE continuem eternamente. Está tudo a correr bem, como acontece no Natal com o peru: o animal dispõe de comida abundante, donos contentes, o peso aumenta, o que poderá correr mal no futuro brilhante que se adivinha?

 

Terça-feira, 16 de Agosto de 2016

Como escreve Jorge Costa, em O Insurgente, a economia portuguesa está presa por um fio. O texto comenta as declarações de um responsável da agência de notação canadiana DBRS, que menciona as dúvidas sobre o crescimento medíocre, a necessidade de meter dinheiro público nos bancos e ainda a incerteza que rodeia a actual situação política. O facto é que na democracia portuguesa nunca existiu um governo minoritário estável, pormenor esquecido em todas as análises políticas que leio na Imprensa. Os comentadores tendem também a subestimar a conjuntura económica: a calamidade social do desemprego desapareceu por inteiro dos radares jornalísticos; o fraco crescimento impede a recuperação da banca e ameaça a receita de impostos; há pressões da Europa no sentido de Portugal fazer as reformas que garantam orçamentos equilibrados e o pagamento da dívida pública, mas ouvimos cada vez mais o argumento da esquerda de que é preciso sair do euro ou renegociar a dívida, única maneira de manter a despesa a crescer mais depressa do que a economia. Restam poucas vozes lúcidas. Uma das excepções é António Barreto, que na sua coluna no DN sublinhava esta semana a pobreza da argumentação da esquerda e o inaturável tom de superioridade moral com que começam todas as discussões. 

 

 

Quarta-feira, 17 de Agosto de 2016

A França discute o burkini, fatiota de praia que tapa inteiramente o corpo das mulheres. Alguns municípios proibiram e impuseram multas, para grande escândalo dos que consideram tratar-se de ‘islamofobia’. O argumento de que as nossas avozinhas usavam roupa de praia semelhante é absurdo, pois entre nós o corpo feminino tornou-se uma banalidade, pelo que a imposição de um pudor extremo alheio à cultura ocidental parece ser uma cedência ridícula das nossas liberdades. Alguma esquerda defende a ideia aparentemente liberal de cada um vestir o que lhe apetece, mas a questão do burkini não é um fait divers, pelo contrário, é altamente política e não tem nada a ver com as liberdades, mas com a opressão. Esta moda está a ser imposta pelos salafistas, corrente extremista com uma interpretação da religião muçulmana que exclui todas as outras, como se pode ler neste artigo de Aalam Wassef, no insuspeito Libération.

A esquerda europeia tende a olhar para a minoria muçulmana nos seus países como um grupo discriminado e oprimido de trabalhadores, resultando num raciocínio perverso de que impor valores ocidentais apenas aumenta a alienação social destes emigrantes e filhos de emigrantes. O avanço das ideias salafistas, graças a dinheiro saudita que sustenta mesquitas radicalizadas, prejudica ainda mais estas populações pouco integradas, que já não apenas rejeitam, mas combatem abertamente as ideias republicanas de Estado secular e liberdade individual. A tolerância da esquerda facilita a intolerância dos fundamentalistas e as primeiras vítimas são as mulheres muçulmanas de França.

O que fazer com o Islão político será o grande tema das presidenciais francesas da primavera de 2017, que entra agora na fase das primárias para escolher os principais candidatos. À esquerda, parece surgir o esboço de um movimento de contestação a François Hollande: Arnaud de Montebourg promete aparecer na corrida como uma espécie de Bernie Sanders francês. Se passar as primárias, será um dos favoritos.

 

Quinta-feira, 18 de Agosto de 2016

Após várias semanas de impasse, os políticos espanhóis decidiram finalmente ir a jogo. Mariano Rajoy, líder do PP, aceitou negociar as condições de Albert Rivera, do Ciudadanos, e tentar a investidura, o que acontecerá no final da próxima semana. Os dois partidos, somados, estão a sete deputados da maioria. Rajoy terá duas oportunidades de formar um governo de minoria do PP: a primeira votação exige maioria absoluta, 176 votos; a segunda exige maioria simples, ou seja, as abstenções serão decisivas e basta que a soma dos votos favoráveis seja superior à dos votos negativos. Os cenários são complexos, como se mostra neste simulador, e não parece existir uma solução estável.

Em princípio, Rajoy pode contar com votos favoráveis dos bascos do PNV e do deputado das Canárias, mas mesmo essa hipótese fica aquém do necessário, apenas 175 votos; caso todos os outros votassem contra, haveria chumbo na primeira votação e também na segunda. Além do voto favorável de bascos moderados e coligação canária, o PP precisa de garantir uma abstenção e parece remota a possibilidade dos catalães da Convergência ou a abstenção do PSOE.

Os socialistas prometem votar contra e arriscam-se a não conseguir formar governo alternativo, pois teriam de fazer um pacto com o Podemos, com exigências duras, o que não dispensava mesmo assim a abstenção dos catalães, com mais cedências difíceis. Aliás, o PSOE teria poucas semanas para negociar e o resultado seria facilmente o fracasso. Seguia-se a dissolução do parlamento e a terceira eleição consecutiva, com alta probabilidade de novo pântano, acrescido do requinte da data limite das terceiras legislativas coincidir com o dia de Natal. A Espanha mergulhou assim numa situação esquizofrénica: o PP não tem aliados para uma maioria absoluta e os socialistas, tendo perdido as eleições, ponderam suicidar-se numa aliança improvável, que terá de incluir a esquerda radical e os separatistas catalães.

 

Sexta-feira, 19 de Agosto de 2016

As imagens chocantes de um menino de Alepo retirado de um edifício bombardeado, filmado em estado de choque, repleto de pó e sangue, lembraram de novo ao mundo o grau de horror que se vive na Síria. A criança chama-se Omran Daqneesh e sobreviveu ao ataque de aviões russos ou governamentais. A indignação é compreensível, mas o mais terrível deste conflito não será tanto aquilo que vemos, como o sofrimento de Omran, mas sobretudo o que não vemos. Segundo a ONU, a guerra civil na Síria já causou a morte a 400 mil pessoas, mas há quem fale em meio milhão. As vítimas são centenas de milhares de feridos, um número de deslocados equivalente a metade da população, mais de dez milhões de pessoas, famílias destruídas, cidades históricas arrasadas, um país devastado. Há quatro milhões de refugiados em relativa segurança no exterior, sobretudo na Jordânia, Líbano e Turquia, e muitos já conseguiram chegar à Europa, talvez mais de um milhão.

A Síria está em escombros e morreu como nação. Há dois grupos principais na guerra civil: as forças governamentais de Bachar al-Assad, apoiadas pela minoria alauíta, pela Rússia, pelo Irão e pela milícia xiita libanesa do Hezbollah. Do outro lado, há centenas de grupos rebeldes, mas juntaram-se sobretudo em duas alianças: os rebeldes sunitas moderados, apoiados pelos EUA, França e Turquia, a que por vezes se juntam salafistas, com apoio Saudita. A segunda grande força anti-governamental é o Estado Islâmico, que combate todos os intervenientes do conflito e pretende exportar a violência, criando atentados no Ocidente.

A segunda camada do conflito é uma guerra religiosa, entre xiitas e sunitas, mas que inclui também o extermínio de cristãos (minoria significativa que apoiava Assad, mas que já deve ser residual). Este labirinto complica-se com a intervenção externa. No pântano sem solução, há uma rivalidade entre americanos e russos, embora os dois países colaborem no combate ao Estado Islâmico; e o mesmo acontece entre Estados Unidos e Irão, cuja rivalidade tem intervalos pragmáticos em que é possível a discreta colaboração contra salafistas, mas sobretudo contra o Estado Islâmico. Os Estados Unidos e a Turquia, aliados na NATO, podem ter interesses diferentes no que respeita aos curdos, que ocupam a faixa de território na fronteira norte da Síria, onde estão aliás também turcomanos e outras minorias que o Estado Islâmico pretende subjugar.

Não falta sequer a esta guerra cruel uma brigada internacional de combatentes ao serviço do Estado Islâmico e vindos sobretudo da Europa, dispostos a executar as piores atrocidades em nome de uma versão homicida da pureza religiosa. Neste pesadelo, que começou em 2011 com manifestações pacíficas então reprimidas por atiradores furtivos e tanques, tem sido impossível um simples cessar-fogo humanitário, já para não falar de um processo de paz que permita o regresso dos refugiados e o início da reconstrução.

 

Sábado, 20 de Agosto de 2016

Um irmão de Omran Daqneesh, ferido no mesmo bombardeamento, não resistiu aos ferimentos. Tinha dez anos. Para que serve a indignação? Esta questão surge na mente de qualquer ocidental incomodado com os horrores da guerra da Síria ou com o pouco que sabemos dela. Nas sociedades contemporâneas temos acesso a um vislumbre do espectáculo do horror. A intransigência do regime de Bachar al-Assad, a violência extrema dos beligerantes, o armamento abundante, a ingerência internacional, o fanatismo religioso que anima os combatentes, enfim, esta guerra parece ter o azar de juntar tudo o que há de pior no mundo. E, no entanto, para travar este conflito era preciso uma intervenção militar em larga escala, com tropas no solo que nenhum político está disposto a enviar. Longe vão os tempos em que os líderes olhavam para os seus exércitos como colecções de soldadinhos de chumbo.

Enfim, somos assim tão insensíveis? Nas notícias há sempre vestígios do mito da culpa ocidental, como se o Ocidente tivesse obrigação de resolver o conflito sem lançar bomba. O facto é que, ao receber em poucos meses um milhão de refugiados sírios, a Europa mostrou uma generosidade sem precedentes, sendo mesmo assim muito criticada pela insensibilidade que nunca teve. É talvez um dos efeitos perversos da globalização: todos os problemas do mundo parecem também nossos, mesmo quando a sua resolução não está ao nosso alcance.

 

Um livro: Arco do Triunfo, Erich Maria Remarque

O autor deste romance foi ele próprio refugiado em fuga da Alemanha nazi. Remarque era uma celebridade internacional, autor de A Oeste Nada de Novo, ainda hoje um clássico. A fama permitiu-lhe fugir para os Estados Unidos e publicar ali este Arco do Triunfo, que garantiu vendas astronómicas e outra adaptação ao cinema: o filme, de 1948, foi interpretado por Ingrid Bergman.

Arco do Triunfo tem cenas demasiado longas e alguma repetição de ideias, há por ali personagens secundárias dispensáveis. Remarque procurou escrever um romance sobre a experiência dos refugiados, mas exagerou na dose da história romântica, pouco convicta, que atravessa toda a história. O autor alemão fora bem mais eficaz num livro de 1939, Desenraizados, sobre a situação dos apátridas que percorriam a Europa em fuga das perseguições raciais do regime nazi. O anti-semitismo, o oportunismo e a indiferença das populações são ali descritos de forma muito crua. Também serviu para o cinema: So Ends Our Night, de 1942 (que nunca vi).

No caso de Arco do Triunfo, há certa dispersão da intriga, concentrada no amor entre o herói, um médico alemão refugiado em Paris, que usa nome falso, e uma mulher misteriosa cujo suicídio ele impede na cena inicial. Essa paixão ocupa dois terços das páginas, mas resulta em excesso de sentimentalismo. Provavelmente, Remarque cedeu um pouco ao gosto da época, por isso o romance vale pelos detalhes, as pequenas histórias dentro da história, os minúsculos golpes de asa que surgem nas reflexões da personagem principal, refugiado não judeu que foi também soldado alemão na Primeira Guerra, tal como aconteceu com Remarque. O melhor vem no fim: Arco do Triunfo tem uma história secundária (concentrada no terço final) sobre uma vingança. São páginas brutais, no duplo sentido de violência e precisão. Na realidade, trata-se de um homicídio perfeito, executado sem remorsos.

A grande literatura está provavelmente ligada à sinceridade, sobretudo quando o autor, sem querer, nos transmite o mais profundo das suas raivas, dos seus ódios e medos. Por isso, a parte deste romance que mais nos perturba é a que tem menos fantasia: diz respeito ao desespero dos refugiados que se arrastam no limbo legal, à espera da prisão e deportação ou da passagem para um paraíso terrestre inacessível. Poucos deles têm esperança em escapar (as situações de injustiça são ainda mais poderosas em Desenraizados). À medida que se aproxima a guerra com os nazis, os ‘sales étrangers’ transformam-se progressivamente em ‘sales boches’. ("Mas somos judeus", diz, com muita graça, uma senhora que ainda não compreendeu o filme).

“Nada retoma a forma antiga”, afirma outra personagem, para sublinhar que o passado nunca voltará: os refugiados são roubados e explorados, não podem ter vidas normais. Arranjam biscates, são fantasmas, vendem quadros da família. O médico, por exemplo, é preso quando tenta salvar a vítima de um acidente. E estas não são pessoas de uma cultura estranha, pelo contrário, são europeus privilegiados, podiam perfeitamente ser aceites na sociedade francesa, mas só merecem desprezo. Em Arco do Triunfo ou em Desenraizados, Remarque fala-nos do verniz fino da civilização, da frágil estabilidade de cada existência, de como uma vida confortável e feliz se pode tornar de súbito numa situação precária, infernal, repleta de regras incompreensíveis e de perseguições sem saída. O livro é um triunfo de pequenas histórias de duas linhas: muitas destas observações curtas foram certamente tiradas da realidade, narrando o labirinto sem escapatória dos que caminhavam como cordeiros para o extermínio. Arco do Triunfo, cuja história decorre em 1939, ajuda-nos a ver com outros olhos o tratamento dos refugiados que tentam hoje chegar à Europa: o nosso tempo, com todas as suas limitações, é bem mais generoso do que um passado que gostamos de idealizar.

 

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