Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Kampala (Reino Unido)

Sérgio de Almeida Correia, 17.07.14

Vendo o título deste post, os meus colegas de blogue deverão pensar que ou sou completamente ignorante ou, então, que ensandeci de vez. E quanto a alguns leitores, daqueles que são mais rápidos a premir o gatilho dos comentários, já me terão chamado todos os nomes que lhes terão vindo à cabeça. E o caso não será para menos, mas acontece que para alguns ministros, ou para quem manda por eles, Kampala fica efectivamente no Reino Unido.

Sucede que, certamente por ordem de alguém do Ministério dos Negócios Estrangeiros ou do Ministério da Administração Interna, e com uma visão superior destas coisas, Kampala está para o Reino Unido como Macau ou Timor-Leste estão para Portugal. Simples, não? Bom, eu vou explicar.

Imagine-se alguém que nasceu em Kampala, em 1960, portanto antes da independência do Uganda, país que ao tempo era uma colónia e estava integrado no defunto Império colonial britânico. Se essa pessoa amanhã adquirisse a nacionalidade portuguesa e ao preencher o formulário para obtenção do respectivo passaporte tivesse de preencher o campo da naturalidade, que local escolheria? Eu, na minha ignorância, escreveria à frente "Kampala, Uganda". Ou seja, pelo facto de ter nascido em Kampala, no actual Uganda, não me passaria pela cabeça escrever que fosse natural do "Reino Unido".

Pois bem, para o MNE e o MAI isto está errado. Porquê? Porque para quem em nome de Portugal emite passaportes na RAEM, um cidadão nacional que seja natural de Hong Kong, tendo nascido naquele território antes de 1997, ainda que tenha uma componente étnica asiática e que até agora todos os seus documentos de identificação e viagem referissem ser natural de Hong Kong, agora, para todos os efeitos, passou a ser natural do "Reino Unido", visto que foi isso que passou a constar do seu passaporte depois de ter sido obrigada a proceder à sua renovação. E tendo reclamado quanto ao facto de nesse documento ter ficado a indicação de ser natural do "Reino Unido", foi-lhe referido à laia de justificação que nascera antes de 1997 e que ao tempo essa actual Região Administrativa Especial da China era uma "colónia do Reino Unido".

Ora, acontece que o referido cidadão nacional, embora tivesse nascido em Hong Kong antes de 1997, não nasceu antes de 1972. Ou seja, quando essa pessoa nasceu Hong Kong também não era território colonial britânico, sendo que em 1972 Hong Kong não estava englobado na lista das Nações Unidas dos territórios a descolonizar, mais acrescendo que de tal organização tanto Portugal como o Reino Unido (membro fundador) já nessa recuada data faziam parte. Se a isto juntarmos que o certificado consular, a cédula pessoal e todos os documentos actuais e os anteriormente emitidos em nome desse cidadão referem ser natural de "Hong Kong", não deixa de ser curiosa a alteração verificada.

Cioso como sou das minhas raízes jamais permitiria, sem me manifestar, que me emitissem um documento de identificação dizendo que sou natural de qualquer outro local diferente daquele onde efectivamente nasci, embora saiba que em tempos também os SIC do Ministério da Justiça considerassem que um cidadão português nascido em Angola ou Moçambique era natural de uma "República Popular", o que apesar de tudo sempre era menos grave do que a situação que me foi dada conhecer e que me autorizaram a aqui publicamente divulgar.

Se a isto juntarmos que no campo da autoridade emissora se escreve "Macau-China", o que corresponde a um local de emissão e não à autoridade que emite o documento, talvez comece a fazer algum sentido o acolhimento pelo Governo da República e o Dr. Rui Machete do Novo Acordo Ortográfico e da Guiné-Equatorial na CPLP. Lá chegará o dia em que Obiang, na sequência de um qualquer golpe de estado no seu país, se refugiará em Portugal e este acabe por um dia lhe conceder a cidadania ou lhe emitir um passaporte. Nesse dia é provável que Obiang, com o seu ar de andaluz, deixe de ser natural de Wele Nzas para passar a ser natural de ... Espanha, pois claro.

As consequências não são tão simples quanto parece. Quem tem de viajar para um destino em que à chegada os nacionais são obrigados a preencher um formulário de onde deve constar a naturalidade, o que deve escrever? Um natural do Iémen, com passaporte português, ao chegar à Suiça ou aos Estados Unidos da América deve escrever no formulário, seguindo a lógica dos serviços do MNE, que é natural do Reino Unido?  

Desconheço qual seja a lógica de tanta estupidez, apesar de tanto quanto me foi revelado a situação já não ser virgem, existindo instruções expressas no sentido de assim ser feito, o que só agrava a responsabilidade de quem o determinou. Será que ser natural de Viana do Castelo é o mesmo que ser natural de Macau?

Não sei quem toma este tipo de decisões perfeitamente aberrantes, nem o que está por detrás delas, a ponto de se mandar colocar Hong Kong na mesma latitude e espaço geográfico de Liverpool. Nem sequer sei se foi para isto que José Cesário já esteve cinco vezes em Macau. Mas são decisões que, em todo o caso, revelam em todo o seu esplendor a insensatez e a ignorância de quem decide e manda fazer. Não será difícil de imaginar que se isto acontece em matérias tão corriqueiras, o que não será com assuntos que requerem um mínimo de conhecimentos, algum estudo e adequada ponderação.

É a "esta gente" e a estes "critérios" que, salvo melhor justificação, estamos entregues.

5 comentários

Comentar post