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Delito de Opinião

Grandes contos (23): Jack London

Pedro Correia, 17.01.15

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É a história de um homem e um cão. Companheiros inesperados no combate à inclemência da natureza na imensidão do Alasca invernoso. Uma história descrita por um antigo aventureiro do Yukon na época da caça ao ouro, alguém que fazia questão de tudo experimentar antes de escrever, alimentado por aquela pulsão existencial a que já Camões aludia ao cunhar uma expressão que legou para sempre à língua portuguesa: saber de experiência feito.

Caminham ambos, homem e cão, com a urgência de quem sabe ou pressente que a parcela do destino que lhes coube em sorte pode esgotar-se a qualquer momento. Inexperiente naqueles trilhos agrestes, o indivíduo de quem nunca saberemos o nome cometeu a imprudência de se fazer às traiçoeiras rotas da neve sem se fazer acompanhar pelo menos de outro homem: a solidão, naquelas paragens, pode significar uma condenação antecipada à morte.

O cão segue-o sem vontade, com um temor ancestral pelos misteriosos elementos brotados do céu ou das entranhas da terra que ser vivo algum conseguiu domar desde a primeira madrugada ocorrida no planeta.

A temperatura nunca ali tinha sido tão baixa. Estavam mais de 50 graus negativos, como o homem descobriu ao verificar que o cuspo congelava no ar antes de atingir o chão. As bolachas com bacon que lhe serviriam de almoço estavam envolvidas num lenço por dentro da roupa, em contacto com a pele: só isso evitava a sua transformação em gelo.

Deviam chegar a um acampamento, já junto à zona índia, por volta das seis da tarde.

 

9789726081579[1].jpgO maior perigo eram os regatos que continuavam a brotar sob finas camadas de neve e por cima do gelo acumulado sobre os ribeiros - armadilhas em que se enterravam os incautos.

«Normalmente a neve que cobria os charcos ocultos formava uma depressão e tinha uma aparência granulosa que anunciava o perigo. Uma vez mais, porém, salvou-se por pouco; e, de outra vez, suspeitando do perigo, obrigou o cão a ir à frente. O cão não queria avançar. Resistiu até o homem o empurrar para a frente e atravessou rapidamente a superfície branca e lisa. De repente ela cedeu, deslizou de lado, mas o animal conseguiu alcançar terreno mais firme. Tinha molhado as patas dianteiras e as pernas, e a água que as cobria gelou quase de imediato. O cão fez esforços frenéticos para lamber o gelo das pernas, depois tombou na neve e começou a morder o gelo que se lhe formara entre os dedos. Era uma questão de instinto. Permitir que o gelo se instalasse era magoar as patas. Não sabia disso, limitava-se a obedecer ao impulso misterioso que surgia das profundezas do seu ser. Mas o homem sabia, por ter reflectido sobre o assunto, e retirou a luva da mão direita para o ajudar a libertar-se das partículas de gelo. Não expôs os dedos mais do que um minuto, e ficou surpreendido com a súbita rigidez que se apoderou deles. Estava mesmo frio. Calçou depressa a luva e começou a golpear furiosamente a mão contra o peito.» (Tradução de Ana Barradas, A Fogueira e Outros Contos, Antígona, 2004).

Eles caminham sem cessar. E nós, leitores, caminhamos com eles, guiados pela sedutora prosa de Jack London, incomparável narrador de pequenas e grandes odisseias do ser humano. À medida que avançam, vamos sentindo frio também. E passamos fome. E sentimos a silenciosa opressão desse vasto oceano de neve que é o Alasca. E percebemos, como só nestas circunstâncias extremas se percebe, como é frágil a nossa condição e desigual a nossa luta contra os arbítrios da natureza.

 

cover_78_buildafire[1].jpgAinda há tempo para acender uma fogueira que lhes permitirá o aconchego de um breve repouso acompanhado de uma refeição destinada a restaurar-lhes as forças. O homem guarda os fósforos como se de um tesouro precioso se tratasse: sem eles a condenação à morte está garantida.

Mas havia que retomar o trilho.

«O cão, desapontado, não queria abandonar a fogueira. Aquele homem não sabia o que era o frio. Possivelmente todas as gerações dos seus antepassados desconheciam o frio, o frio verdadeiro, o frio a cento e sete graus abaixo de zero. Mas o cão sabia o que isso era; todos os seus antepassados sabiam e ele herdara esse conhecimento. E sabia que não era boa ideia expor-se à intempérie num frio tão intenso. Era a altura de se anichar num buraco na neve e esperar que uma cortina de nuvens se entrepusesse entre a terra e o espaço exterior de onde vinha aquele frio.»

Nós, privilegiados, testemunhamos tudo.

Testemunhamos aquela trepidante luta pela sobrevivência em que cada minuto conta. Testemunhamos o diálogo mudo entre o indivíduo que trava o seu primeiro e talvez último combate longe das rotas da civilização e o descendente de lobo cujos ancestrais haviam trocado o amparo solidário da alcateia pelas incertezas do convívio com a espécie humana. Testemunhamos a humilde sabedoria do cão contrastada página após página com a arrogante intrepidez do homem nesta travessia iniciática que simboliza afinal a nossa frágil jornada à superfície da terra.

 

585087[1].jpgNenhum escritor como Jack London (1876-1916) soube escrever tão bem sobre animais em contos e novelas que cruzaram a infância e adolescência de sucessivas gerações de leitores -- inesquecíveis são obras como O Filho do Lobo, Colmilhos Brancos e O Apelo da Selva (cito os títulos portugueses das editoras Civilização e Publicações Europa-América, pioneiras na divulgação entre nós deste notável autor californiano, que tanto influenciou a literatura norte-americana do século XX).

A Fogueira -- To Build a Fire, no título original -- teve uma versão inicial, mais sucinta e destinada a um público juvenil, publicada em The Youth's Companion, a 29 de Maio de 1902. Mas a que passou à posteridade, dotada de inegável força alegórica, surgiu apenas em Agosto de 1908, impressa em dez páginas da revista The Century Magazine. É mais longa, mais rica em detalhes e com um desfecho diferente.

Este conto -- que ganha em ser lido no Inverno -- condensa todas as virtudes de London como prosador: o poder de recriar atmosferas com um vigor descritivo incomparável, a capacidade de captar a atenção do leitor desde as primeiras linhas e o sortilégio de uma escrita fluida, capaz de articular na perfeição conteúdo e forma.

Herman Melville rasgou estradas na prosa de ficção norte-americana, Mark Twain abriu-lhe cruzamentos e Jack London traçou-lhes múltiplas veredas com projecção universal. Como fica bem patente neste conto -- assombrosa parábola do homem no confronto ritual com a natureza, herói anónimo num combate sempre desigual, Sísifo condenado a erguer-se a cada adversidade mesmo com a certeza antecipada de que a morte será o fim.

 

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Anteriores contos desta série:

Missa do Galo, de Machado de Assis

Uma Simples Flor nos Teus Cabelos Claros, de José Cardoso Pires

Circe, de Julio Cortázar

Natal, de Miguel Torga

Desatolado, de John Updike

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