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Delito de Opinião

Grandes contos (20): Cortázar

Pedro Correia, 21.06.14

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Corria o ano de 1951 e ninguém falava ainda em realismo mágico. Julio Cortázar, pouco antes do desterro voluntário (e definitivo) na Europa, em protesto contra a ditadura do general Perón, lançou uma colectânea de contos -- com a chancela da Editorial Sudamericana, em Buenos Aires -- que ganhou fama nos meios literários argentinos. Com um título estranho mas muito ilustrativo do seu conteúdo: Bestiário.

Era a primeira vez que publicava um livro em prosa com o seu nome (antes utilizara o pseudónimo Júlio Denis), talvez consciente de que acabara de enviar ao prelo uma obra-prima.

Não admira que os contos de Cortázar tenham fascinado tantos cineastas -- Antonioni, Godard, Chabrol, Eastwood. Pela linguagem, tão original e apelativa. Pela capacidade de efabulação, cruzando banalíssimos quadros do quotidiano com erupções da fantasia mais delirante. Pelo imaginário, que salta consecutivas barreiras cronológicas. Por uma indefinível sensação de estranheza, desamparo e angústia que assalta tantas das suas personagens e se apodera delas, conduzindo-as aos mais inesperados desfechos.

 

Nascido ocasionalmente na Bélgica ocupada pelo império alemão, nas semanas iniciais da I Guerra Mundial (o centenário do seu nascimento celebra-se a 26 de Agosto), o futuro escritor viveu aqueles anos do mais sangrento conflito bélico até aí conhecido na história da humanidade em sucessivos locais de exílio que levaram a família Cortázar à Suíça e à Catalunha antes do regresso à Argentina, país natal do pai.

Nunca sabemos ao certo até que ponto as mais remotas reminiscências de infância perduram em nós pela vida fora. Aquele desenraizamento original, ocasionado pelos canhões da guerra, fez dele uma criança tímida e fechada, cujo único passatempo era ler livros atrás de livros entre as quatro paredes do quarto, numa casa com um vasto quintal situada nos arredores meridionais da capital argentina.

Alguns dos contos de Bestiário têm origem nessas remotas décadas do século XX em que Buenos Aires se assemelhava a uma grande capital de província, povoada de imigrantes oriundos de Palermo e da Galiza. Cada bairro era como uma aldeia, onde fervilhava a bisbilhotice quotidiana entre vizinhos.

Um bairro em que se escutavam nos modernos fonógrafos os primeiros tangos gravados por Rosita Quiroga, os filmes de Pola Negri davam azo a intermináveis discussões e se comentava o célebre combate de pugilismo entre Jack Dempsey e Luis Ángel Firpo, concluído com a derrota do argentino frente ao campeão mundial de pesos pesados em dois fulgurantes assaltos.

Um bairro em que vivia a bela e misteriosa Délia Mañara, suspeita de lançar peçonha aos namorados: o primeiro morrera com uma síncope fulminante à porta da casa dela, o segundo suicidara-se.

O conto chama-se Circe. Nome da feiticeira que transformava homens em bichos, imortalizada por Homero em dois cantos da Odisseia.

 

Diabolizada nas conversas de patamar do quarteirão, a jovem de 22 anos parecia indiferente ao falatório, vivendo em reclusão na mansão familiar onde fabricava suaves bombons e delicados licores. Loira e magra e pálida como um anjo, «deixava-se adorar vagamente» por um novo pretendente -- Mário, três anos mais novo, que a visitava nas longas tardes de domingo e defendia a sua amada das línguas viperinas da vizinhança.

Objecto simultâneo de um irreprimível desejo e um inconfessável temor, Délia torna-se protagonista de um dos mais singulares contos que alguma vez li. Um conto que nos é narrado, de forma original, não por Mário mas por alguém que lá não está nem nunca esteve: um miúdo à época com 12 anos, de quem nada saberemos a não ser que guardou este relato durante muito tempo na memória imprecisa («Recordo-me debilmente de Mário, mas dizem que fazia um lindo par com Délia»).

O ponto de vista de Délia nunca surge nestas linhas: ela é uma personagem difusa, aparentemente inalcançável: será, no fundo, o que nós projectarmos nela. Com os nossos fantasmas, os nossos delírios, as nossas obsessões.

Realismo mágico avant la lettre? Sem sombra de dúvida.

 

Com minúcia de cirurgião munido de bisturi, Cortázar conduz o leitor na trama da história reconfigurando o mito clássico num cenário realista e quase contemporâneo. À medida que viramos as páginas, vamos descobrindo um arrepiante universo de jaula humana, em que as distâncias entre pessoas e bestas são argamassadas.

«Todos os animais se mostravam sempre submetidos a Délia, não sabia se era carinho ou domínio, andavam perto dela sem que ela os olhasse» (uso aqui a tradução de Joaquim Pais de Brito para a versão portuguesa do conto, inserida em Bestiário, da Biblioteca de Bolso Dom Quixote, 1986). «A mãe dizia que Délia tinha brincado com aranhas quando era pequenita. Todos se admiravam, até Mário, que lhes tinha pouco medo. E as borboletas vinham ao seu cabelo.»

Fascínio fatal. Um dos falecidos namorados havia-lhe oferecido um coelho, que rapidamente morreu. O gato lá de casa aparecera com uma súbita indigestão e rumara ao jardim em busca de ervas curativas, mas em vão. Um peixe que navegava triste no aquário tinha o destino traçado: «Morre amanhã», sentenciou ela -- e assim sucedeu. Naquela casa de um bairro tão plácido e pacato desencadeava-se afinal uma luta sem tréguas entre o delírio e a razão.

Com esta condenada a perder o combate.

 

Seria Délia, tal como Circe, uma espécie de aranha a tecer a sua teia para condenar Ulisses -- aqui chamado Mário -- ao pior dos fins? Assim o sugere Cortázar -- mestre em jogos literários -- com o apelido Mañara, imperfeito anagrama de aranha (araña, em espanhol), ou um vocábulo quase homógrafo de mañera (fêmea estéril, no mesmo idioma).

Seria Délia-Circe, como um crítico sugeriu, afinal uma alusão irónica a Evita Perón, musa da ditadura que enfeitiçou gerações de argentinos? Estaremos perante uma Metamorfose, de Kafka, às avessas em que o insecto-homem se arrisca a transformar num homem-insecto?

Muitos anos mais tarde, já no exílio parisiense, o escritor confessava ter redigido este conto para esconjurar uma fobia que remontava aos dias da infância: «Enquanto comia, tinha o pavor de encontrar moscas ou outros insectos na comida. Escrevi Circe como um exorcismo. E resultou.»

Nunca saberemos se foi mesmo assim: quanta mentira existe afinal na verdade de um escritor?

 

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Anteriores contos desta série:

Natal, de Miguel Torga

Desatolado, de John Updike

O Observador de Caracóis, de Patricia Highsmith

Os Bons Serviços, de Julio Cortázar

Amor numa Rua Escura, de Irwin Shaw

4 comentários

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    Pedro Correia 21.06.2014

    Esta série já vai em vinte, Dulce. Com apenas dois autores repetidos: Hemingway e agora Cortázar. Dois escritores de que gosto muito, por motivos diferentes. Espero voltar em breve com outro "grande conto", género literário considerado menor por gente com pouca sensibilidade para a literatura.
    Quanto ao livro, 'Bestiário', recomendo-o vivamente. Um dos melhores livros de contos que já li.
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    Teresa Ribeiro 22.06.2014

    Tens feito muito pela promoção deste género, só preconceituosamente considerado menor, nesta tua excelente série. Fiquei como a Dulce, cheia de vontade de ler Bestiário.
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    Pedro Correia 22.06.2014

    É um excelente livro, Teresa. Com contos marcados tanto pelo surrealismo como pela psicanálise ('les beaux esprits se rencontrent').
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