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Delito de Opinião

Direito ao esquecimento

Luís Naves, 06.06.14

Na introdução a um livro que publicou em 1911, o escritor britânico H. G. Wells tentou defender-se dos críticos que exigiam rigidez na forma do conto, segundo o modelo de Maupassant. Wells ajudara a inventar um género, a ficção científica, que os peritos ainda hoje desprezam. E, no entanto, esta era uma literatura de ideias que se adaptou muito facilmente ao pequeno formato e à narrativa naturalista. No texto de Wells, após a reflexão sobre o enigma da sobrevivência da arte, que o autor admitia ter profunda ligação à liberdade e à sinceridade, surge esta frase certeira: “As coisas escritas vivem ou morrem”.

No fundo era simples, o mecanismo da vida aplicava-se também a esses produtos do espírito humano chamados ‘obras de arte’ e que, mais tarde ou mais cedo, acabariam por desaparecer, como antes tinham desaparecido os seus autores. É fascinante encontrarmos um velho romance esquecido numa pilha de livros prontos para venda ao quilo: pegamos no volume poeirento e ele deixa-se ler com agrado, apesar dos defeitos e mesmo que não se reconheça o nome de quem o escreveu. Quem seria? Mistério. Não consta das enciclopédias. Foi talvez um zé-ninguém libertado do esquecimento por causa de uma pilha de livros velhos encontrada num sótão desabitado. 

 

Wells escreveu que as histórias vivem ou morrem, e assim era no seu tempo, quando nascia uma modernidade que o autor britânico percebeu ser perturbadora. O nosso século já não tem lugar para essas pequenas insurreições contra a lei da fama. Agora, triunfa a cultura do espectáculo, o populismo das vedetas e a espuma das ideias apressadas. Tudo se resume ao domínio da técnica, da culinária de mestre à melodia sem esforço e ao romance segundo fórmulas testadas. Há mil novidades todas iguais que, sem excepção, querem transformar as nossas vidas também todas iguais, ou pelo menos assim surgem no facebook, que é um mundo virtual habitado por gente feliz.

Se hoje discutimos o direito ao esquecimento é pela simples razão de que este direito está em perigo. Não existe forma de apagarmos a memória, a não ser pela engrenagem do motor de busca, máquina que nos transcende. A poesia tornou-se frívola, mas permanente, e o autor apaga-se, embora sem desaparecer. As coisas ainda lá ficam, embora em águas profundas, sob a pressão de um imenso oceano de palavras. A impossibilidade do esquecimento é igual ao inferno de recordar tudo, mas sem cronologia, onde tudo o que existe está na prisão do hoje, impossível de distinguir do ontem e do anteontem.

 

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