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Delito de Opinião

Dez reflexões sobre o referendo

Pedro Correia, 22.06.16

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Vai haver um referendo amanhã no Reino Unido, vital para o destino europeu. Ninguém diria, vendo a televisão portuguesa – com destaque para o chamado “serviço público”. A avaliar pelos vários canais que confundem notícias com futebol, e confundem futebol com as mais ocas futilidades, o que importa é o penteado de Ronaldo, o sorriso de Ronaldo, a mãe de Ronaldo, o filho de Ronaldo, o penálti falhado de Ronaldo ao poste.

 

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Também amanhã a Europa arrisca ver uma bola embater no poste. Há dois anos estava em causa a eventual saída da Grécia, que vale menos de 3% do PIB da União Europeia. A dimensão do problema é agora muito mais vasta: estamos perante a possível retirada do Reino Unido, segunda economia europeia e  terceiro maior contribuinte líquido do orçamento comunitário. Basta isto para se perceber que o problema não é “deles” – é também nosso. E de uma amplitude muito superior à da improvável derrota da selecção portuguesa esta tarde frente à da Hungria.

 

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Durante décadas habituámo-nos a olhar para a Europa como a solução. Hoje sabemos que a Europa começa por ser o maior dos problemas pela ausência de respostas institucionais face ao tropel dos desafios. Enquanto este dilema não encontrar resposta todos os outros permanecerão em aberto – crise económica, crise demográfica, crise migratória, crise de modelo social, crise de segurança. Porque as dificuldades são de tal forma avassaladoras que exigem soluções à escala continental para encontrar antídoto eficaz. "As grandes questões do nosso tempo transcendem as fronteiras nacionais", lembrou o Guardian no artigo de fundo em que justificava a sua opção editorial eurófila. Nesta matéria todas as bolas têm embatido no poste.

 

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Arrumemos ideias. É fundamental que o Reino Unido permaneça na União Europeia tal como há dois anos era fundamental que a Escócia permanecesse no Reino Unido. Não tanto porque Londres seja a maior praça financeira mundial, metade das trocas comerciais britânicas tenha como origem ou destino o espaço comunitário, oito dos dez principais parceiros económicos do Reino Unido pertençam à UE e os súbditos de Isabel II contribuam para 17,6% do PIB europeu. Mas sobretudo por motivos políticos: tal como uma suposta Escócia independente instigaria o rastilho nacionalista, inaugurando uma sucessão de reivindicações soberanistas por toda a Europa, também a vitória do Brexit no referendo de amanhã abriria um péssimo precedente, como se a unidade europeia tivesse a consistência de uma porta giratória: não por acaso, Marine le Pen já se apressou a reivindicar um referendo em França para 2017. Hoje os escoceses estão na primeira linha do apoio à manutenção do Reino Unido no espaço comunitário. Eles bem sabem de que lado sopram os ventos da economia: a cada segundo exportam 38 garrafas de scotch - um terço das quais, livres de barreiras alfandegárias, se destinam aos restantes países da UE.

 

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Tal como sempre estive convencido de que os nacionalistas escoceses perderiam o referendo de 2014 e que a eleição plebiscitária na Catalunha se saldaria num claro recuo do separatismo, julgo que o Brexit será derrotado amanhã nas urnas pelos eleitores, mais racionais nas suas escolhas do que as manchetes do jornalismo tablóide deixam antever ao trocarem o histórico pelo histérico.

 

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Neste referendo, os eurófilos mobilizam-se por valores – desde logo o da integração europeia, que por estes dias se joga muito para além dos estádios franceses anfitriões do campeonato de futebol. É a concretização do ideal concebido pelos artífices do maior período de paz e prosperidade já conhecido no Velho Continente – homens como Churchill, Adenauer, Spaak, De Gasperi e Monnet. Um ideal em boa parte tornado realidade: com apenas 7% da população do globo, a Europa produz cerca de 25% da riqueza mundial e sustenta 50% das despesas de carácter social do planeta. Os eurofóbicos, pelo contrário, mobilizam-se pela negativa contra os "eurocratas" dispostos a impor-lhes "passaporte e hino", segundo alegou o Sun num texto em que recomendava o sim ao Brexit. Hoje não hesitam em recorrer à mais rançosa retórica xenófoba, insurgindo-se contra a livre circulação de pessoas e bens. Amanhã não tardarão a insurgir-se contra a livre circulação de ideias.

 

7

Aqueles que um pouco por todo o território britânico repetem o estribilho de que “a Europa suga-nos dinheiro e manda-nos imigrantes” esquecem que o próprio país é fruto da imigração – começando pelos saxões e pelos normandos que na Idade Média iniciaram a configuração étnica e cultural desse mosaico tão multifacetado que é hoje o Reino Unido da Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Esquecem também que nunca a soberania de Londres esteve em causa no processo de integração: os britânicos mantêm-se fora do sistema monetário europeu e do Espaço Schengen, conservam a Rainha no trono e no hino, continuam a pagar as contas em libras esterlinas e até têm três selecções a disputar o Euro 2016 (Inglaterra, Gales e Irlanda do Norte), privilégio que não é reconhecido a nenhum outro Estado.

 

8

A campanha referendária que agora termina foi marcada por uma tragédia: o assassínio da jovem deputada trabalhista Jo Cox, firme defensora da manutenção do vínculo europeu do Reino Unido. As cerimónias fúnebres, com a campanha interrompida, constituíram um momento de compreensível consternação nacional, com o primeiro-ministro David Cameron a prestar um comovido tributo à malograda activista eurófila e o líder da oposição trabalhista, Jeremy Corbyn, a expressar um oportuno apelo à decência no espaço comunicacional, conspurcado pelo ódio à solta nas chamadas redes sociais: na política não pode valer tudo.

 

9

A campanha trouxe no entanto algumas notícias positivas. Eis a primeira: a mobilização das gerações mais jovens pela causa europeia. Um eleitor médio britânico com mais de 43 anos tende a ser eurofóbico, enquanto os restantes já se habituaram, em grau crescente, a encarar a UE como casa comum de 500 milhões de pessoas num continente que antes da integração sempre foi devastado pelos demónios da tirania e da guerra. Não deixa de ser irónico que os jovens tenham aprendido esta lição que os mais velhos persistem em ignorar: a Europa é uma construção política demasiado frágil para podermos adormecer confiados em sonhos de paz perpétua. Os ingleses, que combateram Filipe II, Napoleão e Hitler, deviam saber isso melhor que ninguém.

 

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Outra boa notícia que este referendo no Reino Unido já trouxe: a mobilização dos intelectuais eurófilos, que pareciam ausentes em parte incerta. Figuras tão díspares como o cientista Stephen Hawking, os escritores John Le Carré, Julian Barnes e J. K. Rowling, as actrizes Emma Thompson, Kristin Scott Thomas e Keira Knightley, o cineasta Ken Loach e os historiadores Brendan Simms e Timothy Garton Ash, entre muitas outras, pronunciaram-se a favor do Remain – isto é, querem o reino unido à Europa, não desunido. “O meu receio é que a vitória do Brexit produza uma separação geral e que, com o decorrer do tempo, a Europa volte a deparar-se com os seus velhos e aterradores fantasmas”, observou Ian McEwan, outro escritor eurófilo. Vale a pena reflectir neste testemunho ontem publicado no El País. Para que a Europa deixe de falhar penáltis e de marcar golos na própria baliza: são estes os lances que realmente interessam.

10 comentários

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    Pedro Correia 22.06.2016

    Como é que o referendo já vem tarde? A entrada do Reino Unido na comunidade europeia, em 1973, foi sufragada em referendo nacional a 5 de Junho de 1975. Com 67,5% de votos favoráveis.
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    Makiavel 23.06.2016

    Portanto, foi sufragada em referendo nacional há 41 anos e nada mais se passou desde esse dia... para não falar nos países onde nem sequer foi feito.
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    Pedro Correia 23.06.2016

    Foi sufragada a entrada: mais de dois terços dos eleitores britânicos aprovaram. Vai ser sufragado agora. Há dois anos houve um referendo sobre a independência da Escócia.
    Parece-lhe suficientemente democrático ou só merecerá esse rótulo se houver referendos todos os anos? Na segunda hipótese aconselho-o a rumar à Suíça: é o país ideal para si.
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    Makiavel 23.06.2016

    Está a melhorar, já não dá o cabotino conselho para ir viver para a Venezuela, Cuba ou Coreia do Norte. Se calhar, se o tema fosse outro, o conselho lá apareceria.

    Entre sufragar há 40 anos e sufragar todos os anos há todo um mundo de hipóteses.

    São evidentes as tensões internas anti-UE. Nada melhor que um referendo para avaliar o real valor dessas posições.

    Quem tem medo do referendo?

    No caso do UK, com as excepções contempladas (e recentemente renegociadas) na sua adesão, falar em saída ou permanência é quase o mesmo.
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    Pedro Correia 23.06.2016

    Entre sufragar há 40 anos e sufragar todos os anos há todo um mundo de hipóteses."
    Os seus amigos cubanos já resolveram isso há 57 anos. Nem eleições nem referendos nem multipartidarismo nem greves nem imprensa livre. Sufrágios? Ni hablar. Nós temos o bacalhau à Brás, eles têm a democracia à Castro. Castrada.
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    Makiavel 23.06.2016

    Eu desconfiava que o senhor era um cabotino. Confirmei-o agora.

    Os seus amigos cubanos?

    Grau (abaixo de) zero do comentário.
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    Pedro Correia 23.06.2016

    Como bem sabe, foi você que - cabotinamente - puxou o assunto. Estava mesmo a pedi-las.
    Cuba libre!
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    Makiavel 23.06.2016

    Cabotino e capcioso.

    Então quem foi que utilizou o argumento pífio de aconselhar a rumar à Suíça, à falta de argumentos válidos?

    Isto da azia tem mais efeitos secundários do que os inicialmente declarados.
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    Pedro Correia 23.06.2016

    Tenho mais que fazer que aturar leitores que amuam e fazem birrinha. É o que você me faz lembrar: um puto birrento. Parece aquele da anedota, que matou os pais e depois pediu clemência ao tribunal alegando ser órfão.
    Passe bem.
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