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Delito de Opinião

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 05.06.17

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Livro cinco: Coração de Cão, de Mikhail Bulgakov

Tradução de Sílvia Valentina

Edição Alêtheia, 2014

168 páginas

 

Escrita vertiginosamente entre Janeiro e Março de 1925, esta novela constitui uma poderosa sátira à Rússia vermelha. Um retrato impressivo desse colossal embuste a que a propaganda comunista da época chamava o “homem novo” soviético. Propaganda que logo encontrava eco no Ocidente europeu, onde nunca faltaram intelectuais disponíveis a entoar mil hossanas aos putativos ventos da liberdade que soprariam de Moscovo. Como o tempo comprovou, dando razão a uns quantos cépticos, não havia liberdade alguma. Ainda antes de o estalinismo assentar como bloco de betão no antigo país dos czares, já as sementes do totalitarismo estavam lançadas por Lenine, que há cem anos fundou o Estado soviético.

A acção da novela concentra-se num prédio moscovita, pertencente às chamadas classes dominantes no tempo pré-revolucionário e confiscado por “populares” sob o comando de vigilantes vanguardas revolucionárias. Só um irredutível inquilino mantém ao dispor um piso de várias assoalhadas: o professor Filipe Filipovich Preobrajensky, autorizado a manter clínica no domicílio.

O professor não disfarça: é um nostálgico dos tempos antigos. “Um dia, quando tiver tempo, hei-de estudar o cérebro e vou demonstrar que toda esta balbúrdia é simplesmente um delírio doentio.” E assim faz: recolhe em casa um cão vadio, enxotado por todos na rua, alimenta-o e acarinha-o, acabando por sujeitá-lo a uma experiência inédita: enxerta uma hipófise e um par de testículos humanos no animal.

Charik, o transplantado, acaba por transformar-se num homo sovieticus. Bebe vodca a toda a hora, arrota à mesa, odeia teatro por servir de palco à “contra-revolução” e passa a ter como livro de cabeceira “a correspondência de Engels com o… ah, como é que o raio do homem se chama… Kautsky”. Do passado canino quase só conserva uma atávica aversão a gatos.

Bulgakov (1891-1940), romancista e dramaturgo de enorme talento, acabou proscrito pela ditadura, que o condenou ao ostracismo. As suas obras foram proibidas durante décadas: este Coração de Cão, por exemplo, só teve edição legal em 1987, já com os ventos da perestroika lançados por Mikhail Gorbatchov, futuro Nobel da Paz.

O escritor obteve uma vitória póstuma: a União Soviética - que oprimiu toda a criação artística - extinguiu-se, enquanto esta sátira sobreviveu incólume.

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