Delito à Mesa (6)
Vai para uns quantos anos que, quando chega Agosto, enfio os malotes no carro e trato do exílio familiar para a Costa Vicentina.
Gastronomicamente falando, o mês é intercalado por cachorros quentes na praia e, à noite, peixe escalado, do fresquíssimo, ali pescado por gente local. Acrescenta-se com frequência pratadas de percebes (ou perceves, consoante a corrente) e um ou outro churrasco caseiro, quando aparece um habilidoso capaz de dominar a labareda.
Há porém o dia da rebeldia. Várias famílias de amigos deixam os filhos ao abandono e marca-se uma mesa de estadão na Eira do Mel, o respeitado estabelecimento de restauração, sito em Vila do Bispo.
Assim que chegamos, começa o choradinho do “Leite Queimado”, uma rara iguaria, servida à sobremesa, que só há de vez em quando e que, quando há, acaba logo na primeira ronda de clientela. O objectivo primordial é assegurar, à partida, umas quantas doses que permitam acabar o jantar em beleza.
A Eira do Mel proclama-se como um restaurante de Slow Food e faz jus ao que promete, o que quer dizer que leva uma eternidade a servir uma mesa do tamanho da nossa. De maneira que, invariavelmente, vão chegando várias garrafas de vinho até que se consiga ferrar o dente nas entradas. Na altura de apreciarmos os magníficos ovos mexidos com morcela ou o camarão mergulhado em molho fenomenal, já soaram as primeiras gargalhadas guturais que ditam o tom para o resto da refeição.
Das entradas ao prato principal decorre mais um período de tempo considerável. Tanto, que dava para assistir a uma prova do Grande Prémio, com a parte da subida ao podium e tudo. Mas nós não reclamamos porque, para além de continuarmos entretidos nas degustações vinícolas, sabemos o que lá vem: uma cataplana de polvo com batata doce de fazer chorar qualquer coração mais empedernido.
Só por causa desta cataplana, a Michelin devia deixar-se de mariquices e atribuir cinco estrelas ao Chef José Pinheiro.
E é assim que, já com um par de grãos na asa, os convivas contam e recontam vezes a fio as mesmas histórias dos velhos tempos de Sagres, enquanto perdoam a longa espera e molham pão saloio no molho da panela.
No final, se há Leite Queimado assegurado, manda-se servir para acompanhar uns copitos de medronho, daqueles que não se devem beber sozinhos.
No dia a seguir há lamentos na praia, mas todos concordamos que o ritual se há-de voltar a cumprir. Afinal, temos doze meses para recuperar da epopeia.