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Delito de Opinião

Convidado: ANDRÉ ABRANTES AMARAL

Pedro Correia, 20.11.17

 

Das imagens que criei de certos escritores

 

 

“Gostava de livros mas não gostava de escritores

Rubem Fonseca, A Grande Arte

 

Foi em Junho no Chiado. Estava imensa gente em frente à Brasileira e eu tive de me pôr em bicos dos pés para ver Mário Soares, que nessa altura era Presidente da República e que estava no Chiado, em frente da Brasileira, no meio daquela gente imensa a inaugurar a estátua do Fernando Pessoa.

Eu olhava para a estátua do Fernando Pessoa sentado à mesa e de perna cruzada e achava que quem o tivesse visto ali verdadeiramente sentado a ler ou a escrever ou a beber café ou o que fosse, nem que fosse esperar, teria presenciado a história. Eu via uma estátua; alguém tinha visto a pessoa.

 

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Mais tarde, não muito mais tarde só que naquela altura pouco era muito tempo, estávamos na Place Saint-Michel e eu e os meus pais soubemos pela primeira página de um jornal pendurado num quiosque, já não me lembro muito bem mas penso que era o Libération, que Georges Simenon tinha morrido.

A fotografia a preto e branco dum homem com um cachimbo, na primeira página dum jornal naquela praça perto do Quai des Orfèvres, é a que me vem à memória quando pego num Maigret. Pessoa foi uma estátua numa esplanada, Simenon uma foto num jornal preso num grampo dum quiosque.

 

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Anos antes, em frente à Barata havia uma banca de jornais, daquelas que eram caixotes de madeira encostados às paredes dos prédios onde estavam os jornais e as revistas para serem vendidos, e foi pelas primeiras páginas desses jornais pousados em cima dum desses caixotes de madeira encostados às paredes dos prédios, naquela altura como era de tarde os vespertinos desse dia, que soube da existência do José Gomes Ferreira. Soube da existência do José Gomes Ferreira quando ele tinha deixado de existir. Não tinha idade para mais e o homem tinha morrido naquele dia. Ainda nessa tarde cheguei a casa da minha avó que comentou com os meus pais então souberam do José Gomes Ferreira? Vivia perto de vocês. Ao que parece vivia perto de nós e eu não sabia. Ainda hoje lá está a placa. José Gomes Ferreira, além dos livros, mas todos os escritores são alguma coisa além dos livros, tornou-se na placa presa na parede do prédio dizendo a quem passa e não olha para ela que ele viveu ali até àquele dia em que eu soube da sua existência pelas capas dos vespertinos que eram vendidos em cima de caixotes de madeira, frente à Barata.

 

Vamos agora avançar um pouco mais no tempo até uma noite em que eu subia a Avenida da Igreja e me cruzei com José Cardoso Pires. Reconheci-o e, apesar de ter disfarçado, ele deve ter reparado porque quando me viu afastou logo o olhar. Continuei a subir e ele a descer até que ganhei coragem e olhei para trás e vi-o: um vulto que desaparecia na noite enquanto descia a avenida que eu subia. Quando mais tarde li O Delfim ou a Balada da Praia dos Cães, um vulto na noite a descer a avenida era a imagem que me vinha à mente.

 

Deparei-me com outros escritores, alguns nas apresentações dos seus livros outros que vou conhecendo, mas esses perdem o fascínio criado pelas palavras que escreveram. E não é só isso. A magia tem também que ver com a idade. A idade que temos e a idade que eles têm. Ou tiveram. A diferente geração a que nós e eles pertencemos. José Gomes Ferreira, nascido em 1900, ou Cardoso Pires em 25, não têm nada a ver com António Lobo Antunes, nascido em 42. Este estava na feira do livro numa tarde de chuva a conversar com Lídia Jorge, e está bem, era ele e era ela e estavam lá. Pelo menos para mim é assim que para quem tenha agora 10, ou 20 anos, talvez possa ser diferente. Mas quem tem hoje 10 ou 20 anos também não ficou a saber quem era José Gomes Ferreira quando estava em frente da Barata a ver as primeiras páginas dos vespertinos deixados em cima de caixotes de madeira à espera que lhes pegassem.

 

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E depois houve Agostinho da Silva. A minha mãe dava consultas ali muito perto do Príncipe Real e via-o quase todos os dias a tomar café, pois tomavam café no mesmo café no Príncipe Real. Ela via-o quase todos os dias e um dia disse-me que se eu quisesse ela um dia falava com ele e dizia-lhe que eu gostaria de conversar com ele um dia. Eu disse que sim, ela falou-lhe e ele disse que sim também. E encontrámo-nos. Foi numa manhã de Abril na Travessa do Abarracamento de Peniche que eu bati à porta e falámos. Uma manhã inteira nisso, numa conversa sobre Deus, sobre Portugal, sobre os Portugueses, sobre a liberdade, sobre como um político deveria ter a humildade por implorar para não ser candidato, sobre o coitado do Belmiro que só tinha responsabilidades e não era livre, sobre o número de contribuinte que ele recusava ter, sobre aquela frase do homem não ter nascido para trabalhar mas para criar que é uma frase mas também uma forma de estar na vida. Tudo aquilo que Agostinho da Silva dizia nessa altura ele conversou comigo nessa manhã.

Agostinho da Silva não era propriamente um escritor como os de cima, mas um filósofo, um filósofo que se calhar está para Portugal como Paul Ricoeur deve estar para a França. Foi alguém que conheci, a quem apertei a mão, com quem falei e que soube quem eu era. E se outros viram Pessoa sentado no Chiado, eu estive com um dos que melhor o estudaram entrando dessa forma nesta pequena história que escrevi sobre como, se estivermos atentos, acabamos por viver a história.

 

 

André Abrantes Amaral

(blogue O INSURGENTE)

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