As vítimas secretas
Inundações de Lisboa em 1967: número oficial de mortos nunca foi divulgado
Em política não pode valer tudo. Não pode, desde logo, um governo em democracia imitar procedimentos da ditadura.
Trinta e oito dias depois, o Ministério da Administração Interna e o Ministério da Justiça ainda não divulgaram a lista dos mortos nos trágicos incêndios dos concelhos de Pedrógão, Castanheira e Figueiró. Passado todo este tempo, tal lista permanece secreta. O que, obviamente, permite todas as especulações.
Alega-se "segredo de justiça", o que é absurdo. Uma lista de óbitos ocorridos num quadro de calamidade pública é secreta? Desde quando? Não foram registados no Instituto de Medicina Legal?
Insolitamente, repete-se em democracia o ocorrido com as cheias de Lisboa em 1967. Nessa altura a ditadura entendeu manter secreta a lista integral dos mortos, que nunca chegou a ser divulgada.
Uma vergonha agora.
Recordo que a necessidade de publicitar essa lista nominal é uma exigência dos próprios familiares. Até para efeitos de eventual contestação dos critérios que levaram as entidades oficiais a incluir ou excluir pessoas do rol de vítimas, com os correlativos apoios - de ordem financeira e psicológica - a que terão direito os sobreviventes mais próximos.
«Para nos organizarmos, para podermos conhecer-nos e trabalharmos juntos, temos de saber quem somos, quem são os familiares das vítimas», disse uma jurista de Figueiró dos Vinhos que perdeu um filho de cinco anos e está a organizar uma associação de vítimas da tragédia.
A Associação Portuguesa de Seguradores já admitiu estar a ter dificuldades em obter informações sobre as vítimas, na tentativa de apoiar os familiares das pessoas que morreram e os feridos em estado grave, «por razões ligadas à circunstância de este processo se encontrar em segredo de justiça».
O caso só agora tornado público, graças à investigação do Expresso, da senhora atropelada quando abandonava a residência supostamente em pânico, apenas pode ser debatido porque o jornal o divulgou. E suscita desde logo a questão: por que motivo esta vítima foi excluída e o bombeiro vítima de um acidente rodoviário e falecido posteriormente, no hospital de Coimbra, consta da presumível lista?
Não faz o menor sentido associar a enumeração dos nomes das vítimas dos incêndios de Pedrógão, Castanheira e Figueiró ao segredo de justiça.
O que está em segredo de justiça, obviamente, é a componente processual, ligada à investigação que decorre no âmbito do Ministério Público.
A lista de mortos é um dado factual, sujeito a registo e portanto do domínio público: é inaceitável que se mantenha secreta.
Mais: a divulgação da lista decorre de um dever geral das entidades administrativas - e, acima de todas elas, do Governo - de prestar informações aos cidadãos sobre acontecimentos de inegável relevância pública.
É intolerável que esta questão esteja a ser tratada como segredo de Estado. Como se os tempos da censura e da opacidade política vigentes há meio século ainda vigorassem entre nós.
ADENDA:
«A não divulgação da lista das vítimas não tem cabimento»
(Ricardo Sá Fernandes, no Jornal de Notícias)
«Nestes casos, o segredo de justiça serve para apurar culpados, não para se aplicar a vítimas»
(Rogério Alves, no i)
«O segredo de justiça protege dois valores: a presunção da inocência e a investigação. Mas há duas situações que não estão abrangidas pelo segredo: quando existe comoção ou ansiedade social, que é o caso; ou quando há notícias contraditórias, que também é o caso.»
(José Miguel Júdice, no Jornal de Notícias)