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Delito de Opinião

Alguns argumentos sobre a questão catalã

Luís Naves, 12.11.14

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Decorre neste blogue um debate sobre a interpretação dos resultados da consulta popular na Catalunha e queria acrescentar alguns argumentos. Peço antecipadamente desculpa pela dimensão do texto, mas as questões são complexas.

Como afirma Luís Menezes Leitão, em texto anterior, os catalães têm todo o direito de se tornarem independentes, se assim o quiserem. Podemos, no entanto, duvidar que o queiram. Os resultados da consulta são, no mínimo, ambíguos. A votação pela independência foi esmagadora, mas o facto é que dois em cada três eleitores não se deram ao trabalho de ir votar. Para os independentistas, trata-se de um mau resultado. Para quem queira negociar com o poder central, foi um triunfo. Comparando com o referendo escocês, onde a participação rondou 80%, a consulta catalã sugere que apenas votaram eleitores já convencidos.

Em democracia só contam os votos expressos, é verdade, mas aqui temos outros elementos a considerar: a consulta não era legal e os eleitores não tinham obrigação cívica de votar, a primeira pergunta continha forte ambiguidade e os interesses económicos em jogo são demasiado complexos. Numa reportagem que fiz na Catalunha, há uns anos, perguntei a uns empresários (catalães) sobre a independência e eles fugiram da pergunta como o diabo da cruz. Não era bem o que queriam, pois dependiam do mercado espanhol. Outro exemplo: Barcelona é a capital da indústria editorial em língua castelhana, que controla um dos maiores mercados mundiais do sector livreiro. Os escritores catalães escrevem em castelhano, a diferença entre vender mil livros ou cem mil. A questão linguística catalã é tão folclórica como a escocesa.

 

A Catalunha nunca existiu como Estado independente, mas Aragão (a origem histórica da Catalunha) foi um dos reinos mais influentes do seu tempo e chegou a ter um império no Mediterrâneo. Estas memórias permanecem. No século XIV, Portugal e Aragão foram aliados contra Castela, o que aliás levou a várias derrotas militares portuguesas e quase à nossa perda de independência. Em comparação, a Eslováquia, satélite da Alemanha nazi durante a II Guerra Mundial, ou a Croácia, sempre ligada ao Reino da Hungria, ao Império Austro-Húngaro ou à Jugoslávia, terão porventura menos pergaminhos nacionais.

Isto leva-nos ao argumento de que Espanha-fraca é bom para Portugal e Espanha-forte é mau. A ideia não tem sustentação: Espanha-fraca sempre foi mau para Portugal, isso é claro; e, no novo ambiente europeu, Espanha-forte é favorável, pois representa mercado para os produtos portugueses, investimento e emprego, sem implicar qualquer ameaça de anexação. Conclusão óbvia: a independência catalã seria objectivamente má para Portugal, pois afectava a economia espanhola, da qual dependemos.

 

Como refere José Gomes André, mais abaixo, os europeus não têm grande memória das guerras que devastaram o continente, apenas histórias de família contadas pelos mais velhos. Como escrevi em texto anterior, os europeus não sentem qualquer ameaça externa e a União Europeia alterou quase tudo na velha Europa. Há vários exemplos de populações ou até de nações que não se revêem inteiramente nos países a que pertencem, mas os ressentimentos e a noção de injustiça histórica deram origem a mero desconforto. Antes da UE, estas entidades separatistas foram combatidas com dureza. Hoje, não faz qualquer sentido que o Estado soberano resista pela força a uma tentativa de separação.

No entanto, se a Europa é uma vasta zona de liberdade, também se verifica que a independência não implica mais liberdade, tendo vantagens pouco claras para quem se separa. Esta parte do argumento é complicada e exige explicação: a legislação de cada país membro da UE tem de estar de acordo com critérios europeus muito exigentes em matéria de liberdade individual e direitos de minorias. Nas regiões da Europa onde há grupos separatistas ou minorias étnicas, a adesão comunitária reduziu as discriminações e conferiu autonomia a essas populações. Há ainda problemas, sobretudo com as minorias, mas a situação tende a melhorar. Assim, a única liberdade que podia ser obtida com a eventual independência seria a económica, mas mesmo aqui haveria vencedores e perdedores. No caso catalão, os empresários perdiam algum acesso ao seu principal mercado e os trabalhadores teriam mais desemprego.

 

O cerne do conflito está nas transferências financeiras e na ideia de que a Catalunha, sendo rica, sustenta as regiões mais pobres de Espanha. No caso escocês, havia algo de semelhante, o dinheiro do petróleo do Mar do Norte, com os escoceses a pedirem uma maior fatia. Na Bélgica, o problema é ainda o mesmo, não havendo separação por causa de Bruxelas, cujo estatuto de sede das comunidades europeias representa uma fonte de rendimento e de emprego que nenhuma das duas comunidades pode perder.

A Catalunha sente que, na prática, sustenta regiões mais pobres. O reverso da moeda é a circunstância de muitos catalães serem hoje emigrantes de regiões mais pobres de Espanha. Estas pessoas não querem a independência e fizeram um boicote à consulta popular, recusaram-se a votar, mas se houver um referendo a sério vão certamente votar contra. Quantos são? Não sabemos. O que farão em caso de independência? Não sabemos.

O que sabemos é que se a Catalunha se tornar independente, terá grandes problemas com a sua integração europeia, pois a UE baseia-se em tratados internacionais e tudo teria de ser renegociado. Sendo inédita, a situação implicaria certamente um pesadelo legal e burocrático. Também por aqui se prejudicava Portugal. A Escócia sentiu o mesmo dilema e preferiu não arriscar. Parece assim evidente que os grupos soberanistas europeus terão cada vez menos incentivos para lutar pela independência. Os ganhos são incertos e podem perder tudo.

 

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