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Delito de Opinião

A semântica da ditadura

Pedro Correia, 13.07.17

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  Liu Xiaobo (1955-2017)

 

Mesmo na morte, os opositores às ditaduras comunistas são alvo de agressões. Pelo menos, de agressões semânticas. Volta hoje a acontecer: Liu Xiaobo, Prémio Nobel da Paz, o mais conhecido preso político chinês, que se encontrava detido nos calabouços de Pequim desde 2009 por delito de opinião, é alcunhado de "dissidente" nos obituários dos órgãos de informação - incluindo portugueses, que jamais usariam esta denominação para mencionarem um activista contra os defuntos regimes de um Pinochet no Chile ou um Videla na Argentina. Não lhe reconhecem sequer a nobre condição de opositor a uma tirania.

Liu, um dos protagonistas da manifestação de Tiananmen, afogada em sangue pelos tanques do exército chinês em Junho de 1989, só há dias foi transferido para um hospital estatal - já afectado por um cancro no fígado em fase terminal - numa tentativa hipócrita de evitar que o Governo fosse acusado de deixar agonizar na prisão outro dos insubmissos condenados ao degredo interior e à morte cívica pelo regime de partido único que vigora em Pequim desde Outubro de 1949.

 

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 Carl von Ossietzky (1889-1938)

 

Em 1935, o jornalista, escritor e pacifista alemão Carl von Ossietzky foi impedido pelo regime nazi de receber em Oslo o Prémio Nobel da Paz que lhe foi atribuído nesse ano. Estava detido num campo de concentração e morreu escassos três anos depois, vitimado por uma tuberculose. Ninguém ousou alguma vez chamar-lhe "dissidente".

Foi preciso esperar 75 anos para novamente um galardoado com o Nobel da Paz se ver impedido de receber o prémio na capital norueguesa e não poder sequer delegar essa função num membro da família, como sucedeu em 1975, quando Andrei Sakharov se fez representar pela mulher, Elena, e em 1983, quando também Lech Walesa esteve representado em Oslo pela mulher, Danuta.

Em 2010 - e à semelhança do que aconteceu com Von Ossietzky - nem a mulher do galardoado foi autorizada a viajar. Liu Xia, mulher de Liu Xiaobo, estava então sob detenção domiciliária. Presa só pelo facto de ser casada com o novo Nobel da Paz, galardoado em reconhecimento pela sua "luta, longa e pacífica, pelos direitos fundamentais na China", segundo sublinhou o Comité Nobel.

A cadeira que  ficou vazia nessa cerimónia adquiriu de imediato uma poderosa carga iconográfica. Como complemento directo daquela fabulosa fotografia de Stuart Franklin que capta um homem de braços nus a enfrentar uma fileira de tanques em Pequim, a 4 de Junho de 1989, poucas horas após a sangrenta repressão do movimento pró-democracia na Praça Tiananmen.

 

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  Tanques em Tiananmen (Junho de 1989)

 

Uma simples imagem desmente torrentes de propaganda e é capaz de sobreviver ao regime mais tirânico, que tem como argumento exclusivo a força bruta.

Combatamos esses regimes para honrar a memória dos cidadãos que nunca se vergaram aos seus ditames. E a primeira forma de combatê-los é recusar a semântica da ditadura, substituindo-a pelo vocabulário dos homens livres.

 

Leitura complementar: 

Ao lado dos carrascos

Os cúmplices e os outros

Um democrata não é um dissidente