A literatura sobrevive a tudo
No ano passado, antes de rumar às férias primaveris, comprei um livro de um autor muito recomendado em determinadas selectas - figura com presença regular nos ecrãs televisivos e incensada em solos de violino nas gazetas da praxe. Dispus-me a ler aquilo: era volume grosso, de quatrocentas e tantas páginas.
Deu-me para três horas de viagem de comboio. Chegado ao destino, apeei-me na página 100. E nunca mais retornei ao calhamaço. O romance - é de um livro de ficção que falo - permanece adormecido na prateleira de um armário. Não tenciono despertá-lo.
Lembro-me vagamente do fio do enredo: havia uma mulher fechada em casa, assombrada por fantasmas íntimos. Cem páginas adiante, nada sucedera de relevante, aquilo dava um passo em frente e outro atrás sem nunca sair do mesmo sítio.
O que não invalidou que a obra em causa recebesse hossanas em ritmo cadenciado. Certos autores têm este condão de suscitar coros afinados, sempre em estilo laudatório.
Ontem, ao entrar numa das livrarias que frequento com regularidade, deparei com dois romances de estreia, assinados por jovens autores. Uma menina e um rapaz.
Senti curiosidade em ler as frases iniciais.
Escreveu ele: «Se existe algo que eu aprendi é que a vida é estranha.»
Escreveu ela: «Adoro o cheiro dele quando chega perto de mim. Ele ainda não chegou e eu já sei que ele vem.»
Não sei o que mais me impressionou nestes parágrafos de abertura.
Talvez o monumento à irrelevância em letra impressa. Ou a vacuidade do estilo. Ou a profusão de pronomes pessoais, por clara influência da sintaxe brasileira hoje dominante nos circuitos digitais. Ou o culto narcísico tão característico destes dias em que o auto-retrato domina todas as modas.
Talvez a impressionante compressão vocabular nesta era em que há quem jure ser capaz de escrever romances no Twitter - algo equivalente a dançar o tango numa cabina telefónica.
Mas não duvido que ambos, com a rede de conhecimentos adequada, serão capazes de se tornarem "autores de sucesso". Talvez mesmo se elevem à condição de "bestas céleres", como dizia o arguto Alexandre O'Neill.
Espreito-lhes os perfis nas badanas: surgem-me como figuras exemplares desta época. Ele tem «45 mil seguidores no Facebook» - anoto as conotações quase litúrgicas do vocábulo seguidores. Ela é «formadora de softskills», expressão cujo significado ignoro mas que me soa a algo importante. Não me admirava que venham a cometer mais romances. Podem até fazê-lo a um ritmo semestral: há quem viva disto e seja sempre anunciado com laudatórias trombetas mediáticas. Como se estivéssemos perante uma Cartuxa de Parma ou uma Guerra e Paz.
Regresso a casa, retomo a leitura de um dos meus livros favoritos: Africa Minha, de Karen Blixen. E de novo me salta à vista aquela suave cadência das frases de abertura que logo nos convidam a viajar no tempo e no espaço. Recuando cem anos, ao Quénia colonial.
«Tive uma fazenda em África, no sopé das montanhas Ngongo. O equador passa 160 quilómetros a norte desta região e a fazenda ficava a uma altitude de mais de dois mil metros. Durante o dia sentíamo-no mais perto do sol, mas as madrugadas e o fins de tarde eram límpidos e tranquilos e a noites frias. A situação geográfica e a altitude combinavam-se para criar uma paisagem inigualável.»
A melhor literatura sobrevive a tudo. Até ao inqualificável abuso das más práticas que se multiplicam invocando em vão o seu sagrado nome.