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Delito de Opinião

A Carochinha e o João Ratão

Luís Naves, 24.01.17

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Está a tornar-se cansativa a interpretação que olha para as democracias contemporâneas como tendo dois tipos de eleitores: os que sabem pensar e votam bem; e os misóginos, reaccionários, estúpidos, racistas, xenófobos e genericamente brancos pouco qualificados cujo voto não devia contar. Nunca vi tantas pessoas de esquerda escandalizadas com os ataques ao livre comércio e à globalização. O novo presidente americano, condenado por cumprir o que prometeu, é geralmente descrito como não tendo credibilidade, legitimidade, popularidade ou sequer qualquer género de humanidade. Vladimir Putin, o czar da Rússia, parece que venceu as eleições na América, depois de ter vencido o Brexit, mas também se prepara para ganhar as eleições na Holanda, em França e talvez na Itália, usando fantoches e a desinformação da poderosa estação de televisão RT, capaz de enganar eleitores notoriamente estúpidos. Ao mesmo tempo, o líder chinês, que comanda o Partido Comunista, é um generoso defensor das liberdades. Estas histórias da carochinha são defendidas pelos mesmos que se indignam com os ataques de Trump aos espiões da CIA, agora denominados ‘comunidade de inteligência’.

Talvez seja possível uma explicação alternativa da realidade: os eleitores estão a votar contra as elites que falharam durante a crise e estas tendem a defender o statu quo. Os eleitores têm memória, concordam com tarifas sobre carros importados do México porque esses veículos são fabricados por multinacionais que receberam subsídios para evitar a bancarrota, mas que usaram o dinheiro para despedir milhares de trabalhadores e transplantar as fábricas para o México. A administração Obama salvou bancos do colapso, mas ninguém salvou do colapso milhões de devedores americanos que perderam as suas casas e empregos, que conseguiram trabalho precário e com salários inferiores (com sorte, pois há sempre um ilegal que aceita metade do preço e que remédio tem ele, pois se levantar cabelo é denunciado e recambiado). Na Europa, aconteceu algo de semelhante: a finança foi salva, as dívidas dos Estados aliviadas, mas ninguém perdoou um tostão aos brancos pouco qualificados, que viram com alarme a crise migratória, pois os refugiados nunca são instalados em bairros de ricos.

É isto que explica a insurreição do eleitorado e a substituição das elites, mas esse processo é tratado na Imprensa como se fosse o início da Terceira Guerra Mundial. Nas eleições europeias que se aproximam haverá dois tipos de candidatos: liberais dos partidos centristas e críticos do liberalismo, de esquerda e direita. Nesse aspecto, Trump tem semelhanças com Bernie Sanders, que se tivesse ganho as eleições estaria a acabar com os mesmos tratados comerciais, sob o estrondoso aplauso dos meios de comunicação que arrasam o presidente proteccionista e isolacionista de direita.

Em 2017, nas eleições europeias, haverá cordões sanitários para impedir a vitória das formações de extrema-direita, mas as democracias não podem eternamente recusar-se a ouvir as razões de queixa dos perdedores do sistema, ou então devem retirar-lhes o direito de voto. Em Portugal, claro, onde a política é original (ou atrasada no tempo, não sei), o cordão sanitário, aqui chamado geringonça, já serviu para impedir o centro-direita de governar, para aplauso unânime dos que não estão a ver o filme.

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