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Delito de Opinião

Séries do ano (2) - Stranger Things

Diogo Noivo, 27.09.16

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Stranger Things é um regalo para quem viveu os anos oitenta, até para aqueles que, como eu, começaram a década de fraldas e a cheirar a pó de talco. Está lá tudo o que de bom foi produzido pelo cinema de mistério, de aventura e de terror nessa época gloriosa (um adjectivo que evidentemente não se aplica à moda capilar).

Esta série, produzida pelo Netflix, tem muito de E.T., muito de Os Goonies, bastante de Encontros Imediatos do Terceiro Grau, algo de Explorers e de Stand By Me, um pouco de Alien – O Oitavo Passageiro (que é de 1979, mas não é por um ano que nos vamos aborrecer e excluí-lo da década de 1980), um travo a Firestarter, um cheirinho a Pesadelo em Elm Street e, claro, uns apontamentos de Poltergeist e de The Shining. Julgo ter encontrado também referências a Carrie, mas não farei disso um ponto de honra. Na banda sonora há mais anos 80: muitos sintetizadores e miúdos a descobrir The Clash com as cassetes dos irmãos mais velhos.

O enredo, e sem revelar muito, centra-se em quatro miúdos irrequietos (jovens actores fantásticos), personagens que podiam perfeitamente ter saído de versões alternativas de E.T. ou de Os Goonies. Há também uma menina com capacidades psíquicas invulgares (actriz igualmente notável), muito mistério e acontecimentos paranormais. O monstro, no respeito estrito pela pauta dos filmes de terror dos anos 80, só é visto com nitidez lá para o final. Numa última menção aos personagens da série, Winona Ryder, actriz que nas décadas de 1980 e 1990 interpretava miúdas irreverentes, desempenha agora o papel de mãe de um dos rapazes.

 

O entusiasmo juvenil que Stranger Things suscita nos maduros que viveram os 80 é suficiente para nos distrair do quão batido é o guião da série. De facto, o argumento não é inovador. A série aproveita-se do mercado da nostalgia que capturou muitos trintões e quarentões, cuja proximidade à meia-idade porventura os (nos) torne totalmente complacentes com histórias requentadas, desde que ofereçam um passeio à infância e à adolescência. E aqui encontramos, a meu ver, a chave do sucesso de audiências: Stranger Things é muito competente na recuperação das imagens, dos sons, dos temas e dos golpes de asa do cinema dos anos 80, evitando com distinção o enorme risco de resvalar para o kitsch de uma feira de salvados. Em suma, ver Stranger Things foi um vício irrefreável.

Tal como boa parte dos filmes aos quais presta homenagem, Stranger Things é uma história sobre o fim da inocência, sobre a passagem à idade adulta e sobre os medos que nos acompanham nesse processo. A série acaba como deve ser, com um desenlace que se ocupa dos principais nós da história, e as pontas soltas que ficam são parte imprescindível de um bom guião de mistério. Por essa razão, temo o pior desde que soube que Stranger Things terá uma segunda temporada. Bem sei que a vida custa a ganhar e que a tentação para a explorar uma fórmula com sucesso comprovado é mais do que muita. Mas pode ser a receita para matar uma série com todas as condições para se assumir como referência de culto. Enfim, por ora, é ver a primeira e única temporada disponível e entregar-se nos braços da boa nostalgia.

Séries do ano (1) - The Americans

Diogo Noivo, 20.09.16

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Graham Greene e John le Carré ensinaram-nos que o bom espião é aquele que passa desapercebido numa rua vazia. Às séries de televisão coloca-se o desafio inverso, o de sobressair num mercado sobrelotado e ruidoso. Infelizmente, The Americans não foi bem sucedida na missão pois recebeu uma atenção do público muito inferior à merecida, de tal forma que o blogue ‘Quinta Temporada’, do El País, a considera digna do rótulo “a melhor série que não estás a ver”.

The Americans relata a vida de Elizabeth (Keri Russel) e Philip Jennings (Matthew Rhys), dois espiões russos casados pelo KGB, que os infiltrou nos Estados Unidos da América em plena Guerra Fria. São membros do Directório S, um programa da espionagem soviética formado por agentes sem cobertura oficial, pessoas que à superfície têm vidas normais e aborrecidas, simples cidadãos americanos na aparência. Passando do pequeno ecrã para o mundo real, a existência deste tipo de espiões foi motivo de alerta nas Forças e Serviços de Segurança norte-americanos durante a Guerra Fria, embora o caso recente da rede de “ilegais” russos detidos em solo americano prove que este tipo de espionagem não é um anacronismo.

 

Regressando a The Americans, se a espionagem e o conflito entre mentalidades soviéticas e o capitalismo geram tensão suficiente para agarrar o espectador, o outro lado da história não lhe fica atrás. A gestão da vida quotidiana, sobretudo no que concerne à relação com os dois filhos, alheios à vida dupla dos pais (algo que não é um delírio criativo), confere uma densidade à série que muito a valoriza. O guião está bem estruturado, com tramas quase sempre bem urdidas, e é exímio ao agregar a ficção ao momento histórico da Guerra Fria, coordenando o desenrolar da acção com factos políticos relevantes da época, mas também com episódios marcantes da cultura popular americana, como por exemplo a exibição do telefilme The Day After (emitido a 20 de Novembro de 1983, pela ABC). É verdade que algumas das ramificações do estribo narrativo se relevam inconsequentes, mas nem por isso são rasas ou menos interessantes.

Criada por Joe Weisberg (um antigo funcionário da CIA) e por Joel Fields,The Americans começa com um ritmo ligeiro, que vai acelerando ao longo das temporadas, sem nunca perder a sobriedade que nos faz esquecer que se trata apenas de ficção. É uma série tão discreta quanto notável, e aqui sim faz jus aos espiões de Greene e Le Carré. Os dilemas morais que as séries contemporâneas exploram à saciedade são tratados sem exageros ou frivolidades dramáticas. A instabilidade moral é, em The Americans, uma parte grave mas normal na vida de um espião.

Com a chancela da FX, The Americans vai na quarta temporada e terminará com a sexta entrega, a emitir em 2018. Portanto, os interessados vão mais do que a tempo para meter os episódios em dia. Vale a pena.

 

NOTA: O ano ainda não terminou, mas em matéria de séries televisivas já é possível fazer um balanço. Durante as próximas semanas, à terça-feira, trarei ao DELITO as séries que, para mim, foram as melhores de 2016.

Só lá faltou o Barbas

Pedro Correia, 09.09.16

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A TVI inaugurou esta semana um novo "formato": a entrevista sem contraditório. Anteontem, no seu canal de notícias, esta estação televisiva teve como convidado especial o presidente do Benfica. Durante uma hora e cinco minutos.

José Alberto Carvalho estava lá, em pé, a assistir com um sorrriso embevecido. Mas a entrevista foi conduzida por três adeptos do clube dos encarnados: Domingos Amaral, Pedro Ribeiro e Diamantino Miranda. Sentados ao lado do presidente da agremiação a que pertencem.

Nenhum deles integra os quadros da TVI, tanto quanto sei. E não faltam jornalistas por lá que bem poderiam exercer aquela função. Mas a direcção editorial optou por este original formato, que levou o ex-jogador encarnado Diamantino a dar o pontapé de saída com estas comoventes palavras: "Luís Filipe Vieira é conhecido, entre os benfiquistas e não só, como um dos presidentes - senão o único - que tem demonstrado um grande respeito pelos actuais jogadores e pelos antigos jogadores. E eu posso prová-lo."

Estava dado o tom à nova modalidade: a entrevista puxa-saco. Aguardo agora com interesse as futuras entrevistas da TVI 24. Quando lá tiver o presidente do Sporting, um painel de adeptos leoninos prontos a questionar Bruno de Carvalho. Quando lá for o líder do PSD, um trio de militantes sociais-democratas. Quando lá for o primeiro-ministro, só correligionários de António Costa.

Paz e sossego, conversa mole, solo de violino, manteiga no pão, mais sorrisos embevecidos: infotainment no seu melhor. Espero que da próxima vez seja também dado tempo de antena ao Barbas: porque não há-de ser ele um dos "entrevistadores" de Vieira? Se for preciso até lhe passam carteira profissional de jornalista.

"Quase ninguém sabe como se chama o Presidente de Portugal"

Pedro Correia, 22.08.16

 

Quando dava formação a jovens candidatos a jornalistas, costumava fazer testes de elementar cultura geral a esses estagiários. Entre outras perguntas, pedia-lhes que me dissessem o nome da capital das Honduras. E logo ali ficava evidente quem tinha leituras e saberes acumulados, mesmo sem alguma vez lhe passar pela cabeça visitar Tegucigalpa.

Testes deste tipo pelos vistos prosseguem, com as perguntas mais diversas e nas ocasiões mais inesperadas. Por vezes até em directo nas televisões.

Juan Carlos Monedero, um dos fundadores do Podemos e presença habitual nas tertúlias televisivas em Espanha, lembrou-se há dias de perguntar a um jornalista, seu parceiro de painel num acalorado debate no programa Espejo Público, da Antena 3, se ele sabia o nome do Presidente da República de Portugal.

Estupefacção em estúdio: ninguém parecia ter ouvido alguma vez falar em Marcelo Rebelo de Sousa. E a própria apresentadora do programa - Susanna Griso, uma das mais conhecidas jornalistas da televisão espanhola - acabou mesmo por dizer: "Quase ninguém sabe como se chama o Presidente de Portugal."

Este momento lapidar de Espejo Público funciona como espelho, sim. Da gritante ignorância espanhola em relação ao nosso país e da chocante incultura dos tudólogos que pululam nos estúdios televisivos. Tanto lá como cá.

Em política, o que aparece é

Pedro Correia, 21.07.16

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Eu gostaria de ver a política imitar o melhor do futebol. Afinal por cá vejo o futebol a imitar o pior da política. Não o futebol jogado, note-se. Refiro-me ao futebol falado. Ultimamente o espaço do comentário futebolístico nas televisões tem sido invadido por dirigentes, treinadores e funcionários de clubes, numa réplica do espaço habitual do comentário político, hoje parasitado por deputados de todos os partidos.

Tanto os comentadores-dirigentes como os comentadores-deputados são parte interessada em tudo quanto comentam. Cada frase que proferem deve ser entendida no contexto das suas ambições pessoais e das suas legítimas expectativas: a meritocracia em Portugal mede-se pelo número de aparições nos ecrãs televisivos, que funcionam como passaporte automático para patamares cada vez mais elevados.

Na política, nada disto é novo. Em 2002, Emídio Rangel convidou Pedro Santana Lopes e José Sócrates para formar um duo de comentadores na RTP: dois anos depois emergiam ambos como líderes dos dois principais partidos, tendo ascendido à chefia do Governo. Em 2007, pela inefável mão de Pacheco Pereira, António Costa iniciou-se como comentador regular da SIC Notícias: estava lançada a sua candidatura à liderança do PS. Em vez de mergulhar no Tejo, como sucedera a Marcelo Rebelo de Sousa em 1989, mergulhou na telepolítica. Terá engolido alguns sapos, mas pelo menos evitou engolir salmonelas.

De resto, o percurso do actual Presidente da República, construído essencialmente nas últimas duas décadas como comentador alternado de um canal privado e do canal público, confirma esta estreita ligação entre a ascensão política e os holofotes televisivos. Mas Marcelo é Marcelo - um caso à parte no plano comunicacional. Ouvi-lo era um hábito irresistível, por mais que discordássemos do seu tom ou do seu estilo.

Algo muito diferente é assistir ao penoso desfile de deputados que marcam os serões televisivos nos canais noticiosos. Com raras excepções, nada mais têm a debitar do que umas solenes vacuidades, confrangedoras na forma e despojadas de conteúdo. Tanto lhes faz, desde que consolidem o território na respectiva trincheira. Podem todos proclamar-se fiéis ao lema dos novos tempos: em política, o que aparece é.

Eu já evito escutá-los - desde logo porque sei tudo quanto dirão ainda antes de abrirem a boca. Mas não cesso de me espantar quando vejo que as televisões abdicam cada vez mais dos seus próprios comentadores para cederem tempo de antena à confraria dos deputados.

Agora está a acontecer algo semelhante no reduto do comentário futebolístico, cada vez mais confiado aos representantes das confrarias dos dirigentes e dos treinadores. Também aqui só quem aparece é. Saiba ou não saiba falar, tenha ou não tenha coisas originais para dizer, saiba distanciar-se ou não de rancores e ódios pessoais que lhe contaminem o discurso.

Fora de série (balanço)

Pedro Correia, 21.06.16

Durante cinco semanas mantivemos aqui uma série colectiva de textos - mais uma, a juntar a várias outras publicadas no DELITO - intitulada Fora de Série. Precisamente sobre as séries, mais remotas ou mais recentes, que nos marcaram enquanto telespectadores.

Fica a recapitulação, em jeito de balanço:

 

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Competiu-me dar o pontapé de saída, a 15 de Maio. Escrevendo sobre ALL IN THE FAMILY / UMA FAMÍLIA ÀS DIREITAS.

 

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Seguiu-se o Luís Naves, a 16 de Maio. Com ESPAÇO 1999, um clássico televisivo de ficção científica.

 

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A primeira menina - e terceira autora - a chegar-se à frente foi a Marta Spínola, que escreveu a 17 de Maio. Sobre HILL STREET BLUES / A BALADA DE HILL STREET.

 

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A 18 de Maio, a Patrícia Reis trouxe-nos aqui outra série de boa memória: WE'LL MEET AGAIN.

 

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Também inesquecível é a série escolhida a 19 de Maio pelo Sérgio de Almeida Correia, número cinco deste lote: LA PIOVRA / O POLVO.

 

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A ficção científica regressou a 20 de Maio, desta vez pela pena do Luís Menezes Leitão, autor de um texto sobre STAR TREK / O CAMINHO DAS ESTRELAS.

 

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21 de Maio entrava em cena o João André, escrevendo sobre BLACKADDER.

 

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PIPI DAS MEIAS ALTAS, conhecida produção sueca, foi a série escolhida pela Isabel Mouzinho num texto aqui publicado a 22 de Maio.

 

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Originalidade: a mesma série - LES GALAPIATS / OS PEQUENOS VAGABUNDOS - mereceu dois textos, com pontos de vista muito diferentes, assinados pelo José Navarro de Andrade23 de Maio e pela Ana Vidal a 24 de Maio.

 

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O Diogo Noivo entrou em cena a 25 de Maio, com um texto sobre X FILES / FICHEIROS SECRETOS. Série que tem andado por aí outra vez, para satisfação de muitos nostálgicos...

 

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26 de Maio o Rui Rocha lembrou-nos LING CHUNG, um herói do Oriente.

 

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Veio então o João Campos, partilhando connosco a 27 de Maio as recordações que guarda de SLEDGE HAMMER!

 

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BONANZA, clássico dos clássicos, não podia faltar: passou por cá a 28 de Maio. Pela pena do Fernando Sousa.

 

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E OS SOPRANOS chegaram a 29 de Maio. Com a Teresa Ribeiro a lembrá-los cá no blogue.

 

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Foi então o momento de lembrar a série espanhola VERÃO AZUL, que marcou toda uma geração. Com texto da Francisca Prieto, publicado a 30 de Maio.

 

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Chegou depois DUARTE & COMPANHIA, pela mão do Alexandre Guerra. Um quase-clássico português, aqui lembrado a 31 de Maio.

 

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E quem não se lembra de MacGYVER? Também ele passou pelo DELITO, a 1 de Junho, recordado pela Ana Lima.

 

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Uma das mais hilariantes séries de sempre marcou igualmente presença cá no blogue: FAWLTY TOWERS, de que nos falou o José António Abreu a 2 de Junho.

 

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ERA UMA VEZ O ESPAÇO, série de animação, foi lembrada aqui a 3 de Junho pelo Adolfo Mesquita Nunes.

 

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Outra série de animação, NARANJITO / FUTEBOL EM ACÇÃO, mereceu destaque a 4 de Junho, num texto do António Manuel Venda.

 

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Chegou então o célebre SEINFELD, de que nos falou o José Maria Gui Pimentel a 11 de Junho.

 

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E a série encerrou a 19 de Junho com um texto da Ana Cláudia Vicente. Sobre SIX FEET UNDER / SETE PALMOS DE TERRA.

 

Vinte e três textos no total.

Espero que tenham gostado.

Não tardaremos a lançar nova série colectiva cá no blogue. Prometo dar notícias muito em breve.

 

Quando terrorista parece turista

Pedro Correia, 17.06.16

«Hoje ninguém mais discute que, apesar de ser uma língua só, temos a variante brasileira e a variante portuguesa, iguais em quase tudo mas diferentes especialmente no vocabulário (o que é natural) e na pronúncia (como pode ser constatado em qualquer canal da TV portuguesa).

Na pronúncia portuguesa, há uma forte tendência de queda das vogais átonas. "Pelotão", na voz dos âncoras da RTP, soa como "plutão". Luís Fernando Veríssimo conta que assistiu a uma chamada sobre os atentados de Paris e demorou a perceber que o "turismo" de que tanto falavam era, na verdade, "terrorismo". Esse processo teve um impacto direto na pronúncia dos pronomes átonos, que lá ficaram anêmicos, praticamente reduzidos a uma mera consoante. Em "dá-me", por exemplo, o "me" é realizado como /m'/, em "devo-te", o "te" vira /t'/, literalmente uma cuspidinha.

Aqui no Brasil, porém, ocorreu exatamente o contrário: o sol dos trópicos fez muito bem às vogais, deixando gordos e saudáveis nossos pronomes.»

 

Cláudio Moreno, professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor d' O Prazer das Palavras, em artigo de opinião na revista Veja 

A ideologia nas séries de TV

Pedro Correia, 14.06.16

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 CSI original (2000)

 

Os ditames da correcção política têm levado as séries televisivas norte-americanas a distanciar-se progressivamente da realidade, criando um universo paralelo que só existe na tela e nada tem a ver com o mundo real. Serve de entretenimento, claro. Mas em nenhum momento sentimos que existe ali a amálgama de sangue, suor e lágrimas correspondente à vida de todos os dias. E em poucos domínios isso se verifica tanto como nas séries policiais.

Senti isso recentemente, ao ver há meses pela primeira vez as duas temporadas iniciais (2000-02) do tão celebrado CSI: Crime Scene Investigation – o genuíno, o de Las Vegas. Uma série inovadora por focar aspectos científicos e tecnológicos relacionados com a perícia forense, aliás depois repetidos até à náusea por um enxame de imitações muito inferiores.

CSI entrelaça habilmente as vidas de vítimas, criminosos e funcionários do laboratório policial da cidade, ressaltando dessa amálgama um curioso mosaico social. O problema é vermos esse mosaico distorcido pela ideologia: os criminosos são na esmagadora maioria homens brancos, de 30 a 45 anos, pertencentes à classe média-alta ou ricos. Matam em regra por cupidez, ganância, inveja. Em mais de 40 episódios destas duas temporadas só por duas vezes vi criminosos oriundos das chamadas minorias étnicas.

Lamento, mas o mundo não é assim – um mundo enxameado de assassinos brancos e tendencialmente milionários, não muito novos nem velhos. Este padrão de criminoso socialmente correcto, mais do que os prodígios tecnológicos destinados a esboçar a identidade de um homicida a partir de um cabelo plantado num soalho, fazem de CSI um produto distorcido, embora estimável.

 

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 Um Crime, Um Castigo: a diferença francesa

 

Nada a ver por exemplo com uma excelente série policial francesa que revi em simultâneo, na RTP 2 – canal que deste modo cumpre a sua missão de serviço público ao proporcionar-nos o acesso a produções fora do âmbito da indústria norte-americana. Refiro-me a Um Crime, Um Castigo (originalmente intitulada Engrenages), realizada entre 2005 e 2014.

Ao contrário da equipa chefiada pelo biólogo Gil Grissom na noite de Las Vegas, a brigada que tem como líder a capitã Laure Berthaud lida com todo o género de criminosos: residentes e imigrantes, velhos e novos, homens e mulheres, vagabundos, prostitutas, chulos e drogados, pessoas de todas as cores, de todas as classes e todas as crenças ou descrenças. É gente que anda por aí, nas esquinas de avenidas, ruas e vielas. Gente comum, surgindo no ecrã sem o absurdo espartilho imposto por sucessivas exclusões étnicas, religiosas ou de género que abre um abismo entre a televisão e a vida real nos Estados Unidos.

Antes o panorama era diferente - algo bem demonstrado por séries como Hill Street Blues (1981-87)ainda realizadas longe das ameaças de boicotes e processos judiciais exercidas pelos influentes grupos de pressão que hoje condicionam os estúdios cinematográficos e televisivos norte-americanos, onde funcionam como comissões de censura prévia, impondo um monolítico padrão de mau – invariavelmente WASP [White, Anglo-Saxon, Protestant].

Os Sopranos (1999-2007) foi talvez a  última grande série norte-americana capaz de enfrentar com êxito estes poderosos lóbis que patrulham a escrita, realização e actuação televisiva nos Estados Unidos. Ali havia assassinos que “vinham de baixo”, falavam inglês com sotaque e matavam porque o mal é intrínseco à natureza humana, ao contrário do que apregoam os novos teólogos da ideologia socialmente correcta.

Que o digam Laure e os tenentes Gilou e Tintin: eles enfrentam marginais de carne e osso, não apenas as caricaturas de conveniência que a cartilha impõe.

Da política às mulheres, a Itália é tudo menos recatada

Alexandre Guerra, 07.06.16

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 Apresentadora da RAI3, com um dos seus célebres decotes/Foto actualizada

 

Segundo aquilo que se leu na imprensa, desde a semana passada que vigora um novo código de indumentária na RAI (televisão pública italiana), para que as suas pivots de informação tenham “uma imagem mais recatada, menos provocadora”. Decotes, vestidos justos e outros trajes que possam ser considerados mais arrojados estão proibidos. Em qualquer outra televisão pública europeia ou de outra parte do mundo esta medida até passaria despercebida e até poderia ser compreensível. Mas fazer isto na RAI é quase o mesmo que vestir uma tanga ao David de Miguel Ângelo. 

 

A Itália é um país fascinante a vários níveis e a RAI é também um pouco o espelho da realidade daquele país, com tudo o que tem de bom e de mau. A arte, a história, a cultura, a beleza, a elegância, o prazer, a gastronomia, a paisagem, tudo se conjuga de uma forma desorganizada, mas ao mesmo tempo irresistível. E com a política italiana passa-se o mesmo. Apesar de, por vezes, ser dominada por uma total ausência de ordem e lucidez, a verdade é que é impossível ficar-se indiferente ao que por lá se vai passando. De certa maneira, assemelha-se a uma arena romana que vai servindo para entreter o povo, onde tudo é possível, mesmo as maiores barbaridades, mas os aplausos não deixam de soar.

 

Em Itália tudo é vivido com intensidade, paixão e irracionalidade, para o melhor, mas também para o pior. Nada é inconsequente. Só em Itália se encontram fenómenos como o da deputada Cicciolina (hoje seria apenas uma pequena excentricidade, mas como explicar uma coisa destas ainda nos anos 80?) ou de Silvio Berlusconi (imagine-se, o político que se manteve durante mais tempo no cargo de primeiro-ministro desde a II GM). Ou nos anos mais recentes, o da ascensão meteórica de um palhaço (no sentido literal) na cena política transalpina. É por isso que o sistema político italiano é um autêntico laboratório. Em Itália tudo é possível e tudo é aceite com a maior das normalidade. Regras e normas ficam para os europeus "normais", já que os italianos preferem a incerteza do dia seguinte e a animação da anarquia sistémica. Mas, o curioso é que o sistema político italiano lá vai funcionando. À sua maneira, é certo.

Telenovelas portuguesas revisitadas em onze andamentos (e um enorme sofá)

Pedro Correia, 24.05.16

 

De vez em quando, sigo de relance uma telenovela portuguesa - daquelas que me garantem ter "imenso sucesso" e serem acompanhadas devotamente, noite após noite, por audiências dos mais diversos segmentos sociais.

Tendo sido espectador regular das primeiras telenovelas que se produziram em Portugal (Vila Faia, Origens, Chuva na Areia) e de algumas posteriores, como A Banqueira do Povo, sinto curiosidade em perceber a evolução do fenómeno. Mas facilmente me decepciono, por motivos que adiante explicarei. E volto a passar meses sem espreitar nenhuma.

 

Em primeiro lugar, há muito mais glamour do que havia nos tempos pioneiros da Vila Faia. Agora elas são quase todas muito novas, muito giras e muito produzidas. Não há caras feias, quase não se vislumbra ninguém com rugas e as variações geracionais dos protagonistas são mínimas. Não estamos perante um simulacro da realidade: estamos perante a sua distorção.

 

Em segundo lugar, vejo pouquíssimos actores - daqueles calejados em anos de trabalho nos palcos ou na tela. Os papéis parecem exigir apenas intérpretes muito jovens, de carinhas larocas, gente 'formada' nas passarelas da moda e não no Conservatório, numa espécie de Morangos com Açúcar em versão perpétua.

 

Em terceiro lugar, todas as personagens falam com sotaque de Lisboa - muito 'tá em vez de está, muito te'fone em vez de telefone, indo muito p'à praia em vez de seguirem para a praia. A direcção de actores que tão bem fez trabalhar sotaques e pronúncias na primeira telenovela da SIC, A Viúva do Enforcado, andou para trás de então para cá e hoje é possível escutarmos uma pretensa açoriana ou uma suposta portuense dizerem 'chtamoch em vez de estamos ou mêmo em vez de mesmo, como se fossem transplantadas do eixo Lisboa-Cascais.

Disparate? Pois é. Mas ninguém parece reparar. E dirigir actores dá trabalho, leva tempo e custa dinheiro: o melhor é não se pensar nisso.

 

 

Em quarto lugar, reparo que o verdadeiro protagonista é o sofá da sala. Vivem quase todos em casas com salas enormes, mobiladas com sofás a perder de vista, onde 80 por cento dos diálogos se desenrolam. Curiosamente, parecem morar todos em vivendas ou duplexes: se repararem com atenção, encontram sempre uma escadaria interna no décor. Outra curiosidade: não existem átrios, antecâmaras ou corredores: por mais luxuosa que seja a residência, entra-se directamente da porta da rua para a sala de estar. E ninguém parece reparar em tal incongruência.

 

Em quinto lugar, e apesar de quase todas as cenas ocorrerem dentro de portas, o guarda-roupa é sempre próprio de quem está fora. Nada de roupões, de T-shirts de alças, de pijamas, de calções, de pantufas ou chinelos. Elas estão sempre em casa de vestido e salto alto, eles jamais despem o casaco ou afrouxam sequer o nó da gravata. Todos são incapazes desse gesto tão comum (e para mim obrigatório) que é descalçar os sapatos da rua assim que entram em casa.

 

Em sexto lugar, abundam padres de sotaina e cabeção, à moda antiga, sopeiras fardadas e até mordomos de libré, como nos filmes ingleses dos anos 30. Nada mais démodé, em perfeito contraste com o tom pretensamente modernaço da maior parte das telenovelas.

 

Em sétimo lugar, é frequente ouvirmos os patrões tratar os empregados por tu, como se fossem todos antigos latifundiários alentejanos antes do 25 de Abril. Nada mais anacrónico.

 

Em oitavo lugar, é impressionante o número dos que não trabalham. Aliás, o mundo do trabalho está praticamente ausente das telenovelas. À luz do dia, as personagens passam o tempo a entrar e a sair das respectivas casas. Raras vezes o local de trabalho é ponto de encontro e são escassos os protagonistas que desenvolvem alguma actividade profissional credível. Há dias vi até um "jornalista" estendido no inevitável sofá a dizer à mulher ou namorada que acabara de escrever uma "crónica" que lhe dera imenso trabalho e estava já a pensar na "crónica" do dia seguinte embora estivesse com uma aflitiva falta de tema. É tocante esta forma como o quotidiano dos jornalistas surge nas novelas da TV - qualquer semelhança com a realidade não passa de coincidência.

 

 

Em nono lugar, os diálogos. Têm todos a espessura de uma banal troca de mensagens de telemóvel. Recentemente, ouvi numa telenovela da Globo a expressão "custar os olhos da cara" e achei quase insólito que surgisse num diálogo de ficção televisiva. Porque as telenovelas portuguesas só raras vezes - quase por descuido - recorrem às saborosíssimas e tão genuínas expressões idiomáticas da nossa língua, sedimentadas através das gerações: preferem os diálogos sincopados, cheios de termos monossilábicos, na concisa fraseologia lisboeta contemporânea, incapaz de ultrapassar uma centena de vocábulos.

Daí proliferarem diálogos do género:

- Como 'tás?

- 'Tou bem. E tu?

- Tudo OK. 'Bora lá?

- Fixe. 'Tou nessa.

Já para não falar no clássico dos clássicos do género: entra Beltrana na casa de Sicrano e diz: "Temos de falar". Como se vivêssemos num tempo anterior à invenção dos telefones.

 

Em décimo lugar, os nomes. Elas falam com eles e eles falam com elas debitando a todo o momento os nomes uns dos outros. Talvez para não se esquecerem como cada um se chama no meio de tanta personagem.

Mesmo que a interlocutora seja a melhor amiga:

- Tu gostas do Eduardo, Rita?

- Não tenho a certeza se o Eduardo é homem p'ra mim, Leonor.

Mesmo que se trate de um par de namorados já maduros:

- Podemos jantar amanhã, João? Vou buscar-te ao escritório.

- Não posso, Filipa. Amanhã é dia de eu estar com o meu filho Gonçalo.

Pormenor: o Gonçalo é filho único, o que torna absurda a invocação do nome. Se falássemos assim na vida quotidiana parecíamos uns tontinhos. Mas nestes diálogos telenovelescos ninguém parece estranhar.

 

Em décimo primeiro lugar, os pequenos-almoços. Só nas novelas televisivas há tempo, oportunidade, sincronia e paciência para todos os ocupantes da mesma casa tomarem a primeira refeição do dia pausadamente sentados em lautas mesas onde nunca faltam grandes jarros com sumos de frutas tropicais, como se estivessem hospedados em hotéis de luxo.

Ah, estas inesquecíveis cenas de pequeno-almoço: são um must divertidíssimo, embora absurdo, destas ficções que pretendem 'copiar' a realidade e afinal estão irremediavelmente longe dela.

Texto reeditado e ampliado

E se fosse consigo?

Ana Vidal, 19.05.16

Acredito, sem ironias, que Catarina Martins tenha mesmo sido apanhada por acaso no programa "E se fosse consigo?". Por que havemos de pensar sempre o pior das pessoas em todas as situações?

Mas, já que as figuras públicas entraram na dança, tenho uma sugestão para a Conceição Lino: inverter os papéis. Num próximo programa, pôr como actores um político e um jornalista conhecidos à chapada num jardim público (assim de repente, lembrei-me de João Soares e Augusto Seabra, ou Sócrates e um jornalista do Correio da Manhã) e ver as reacções dos transeuntes. Tenho genuína curiosidade de saber se alguém iria separá-los, dar-lhes lições de civismo ou... ajudar à festa.

Os mesmos de sempre

Pedro Correia, 03.04.16

São sempre os mesmos comentadores, ano após ano, década após década. Desfilam nos canais de sempre debitando as mais esforçadas banalidades de que são capazes. Nos últimos dois dias, ouvi sete (não exagero) sublinharem, com ênfase de La Palice, que "o futuro de Passos Coelho está dependente da boa ou má prestação do governo de António Costa".

Cada um que comparece no ecrã copia sem pudor o que o anterior disse. Falam longos minutos, horas, dias, meses. Dizendo coisas profundíssimas, como a frase que mencionei acima. Antes de começarem a falar já adivinho tudo quanto vão dizer - às vezes palavra por palavra.

Falam de política reclamando "reformas", "inovação", "golpes de asa". Sem perceberem que a verdadeira reforma, a maior inovação, o mais genuíno golpe de asa dos canais que os acolhem com aparente carácter vitalício seria removê-los e pôr outros no lugar deles. Outros que dissessem coisas que talvez nos surpreendessem, que talvez nos dessem pistas interessantes, que talvez nos pusessem a pensar.

Terapia

Francisca Prieto, 15.02.16

Apesar de não costumar assistir a ficção portuguesa, comecei a ver na diagonal a Terapia, na RTP1, por ser amiga de uma das actrizes. Três episódios mais tarde, ainda nem se vislumbrava no ecrã um cabelo da tal amiga, e já estava rendida à série. Ao invés do registo noveleiro a que a televisão portuguesa nos tem habituado, em Terapia assistimos a um registo muito próximo do universo cinematográfico. Com a particularidade de ser um formato que exige excelência do trabalho dos actores, porque é disso que se trata: de dissecar a alma humana até ao seu fio mais descarnado. E ninguém aguentaria assistir a minutos sem fim de texto, em grande plano, se este não fosse muito bem interpretado.

No primeiro episódio, a Soraia Chaves aguenta-se bem, mas num papel ingrato: o de mulher destrambelhada que se faz valer pela sedução (já a tínhamos visto fazer isto, e bem, pelo que não nos caem os queixos).

É no segundo episódio que nos rendemos com um Alex interpretado pelo Nuno Lopes, que nos diverte, ao mesmo tempo que nos esmurra o estômago. E ao longo de todas as terças feiras, a personagem vai ganhando cada vez mais corpo, ao ponto de a dissociarmos do actor. Tão bom, mas tão bom, que é imperdível.

Depois, quando liguei a televisão na primeira quarta feira da série, dei com uma adolescente chamada Catarina Rebelo que me fez entregar os pontos. O raio da miúda é tão bem malcriada que estamos sempre à espera de ver quando é que o Virgílio Castelo perde a paciência.

A minha amiga aparece mais à frente, como mulher do Virgílio Castelo, o psiquiatra de serviço. Primeiro de mansinho, em cenas curtas, mas depois, às sextas feiras, com mais protagonismo, durante as sessões de terapia de casal com a Ana Zannati (impecavelmente igual a si própria, num desempenho tranquilíssimo).

Ora eu estava habituada a ver esta minha amiga noutro tipo de registo. Concretamente no de Manoel de Oliveira, onde fazia de senhora do Douro, ou descia dos céus feita ninfa no meio da guerra colonial, ou então era uma freira, ou até uma rapariga pobre do Raul Brandão, a falar francês pelo filme fora. Sempre tudo muito devagarinho e com olhares enigmáticos.

Sempre bem, sempre em obras de eleição, mas num universo etéreo, como se fosse fora do mundo.

Era-me muito difícil avaliar o seu trabalho de actriz porque ficava invariavelmente desconcertada. Tinha sempre a sensação de que aquela senhora era uma espécie de sósia da minha amiga a quem digo montes de disparates sem qualquer cerimónia, e isto, de alguma maneira, não fazia sentido.
Na sexta feira passada quando a vi, na Terapia, fiquei banzada. Provavelmente porque a personagem se move num universo que me é mais próximo, pela primeira vez consegui olhar para a Leonor actriz sem que fosse através de uma cortina de organza. Deparei-me com uma força extraordinária, que se movimenta pelo texto fora (e que difícil que era o raio do texto e que violenta era a tensão do momento cénico) e que derruba tudo, com uma fluidez irrepreensível e uma linguagem corporal de se lhe tirar o chapéu.

Parabéns à direcção de actores, parabéns aos actores e, se me permitem, uma grande salva de palmas à minha amiga de quem tanto me orgulho.

 

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Até o microfone treme

Pedro Correia, 17.09.15

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Não vi o jogo, mas conservei a música de fundo. Não era Mozart, nem a Callas, nem sequer Ella Fitzgerald

Era o que se arranjava: Luís Freitas Lobo.

Enquanto trabalhava, mantive ontem o som da partida Dínamo de Kiev-Futebol Clube do Porto, transmitida pela Sport TV: forneceu a atmosfera ideal para me me concentrar naquilo que fazia.

Freitas Lobo é muito mais do que um comentador do esférico: é um verdadeiro poeta da pantalha, artífice da metáfora, ourives do rendilhado oral.

Fala de futebol como se discorresse sobre física quântica. Ficamos a perceber o mesmo: nada. Mas não deixamos de admirar aquela catarata de palavras com o seu cunho inconfundível.

 

Aqui estão algumas das suas pérolas, que fui escrevinhando enquanto o escutava de costas para a televisão: 

«O Porto neste início de encontro define uma zona de pressão média-baixa.»

«Lopetegui não pediu largura a André André, pede-lhe que apareça por dentro a pegar na bola.»

«O jogador russo já lhe tinha ganho a frente.»

«O Porto baixou a zona de pressão.»

«Embora jogando com dois pivôs, há sempre a possibilidade de um deles bascular um pouco para fazer essa cobertura.» 

«André André procura sempre associar-se a outras linhas, juntando as pontas do meio-campo.»

«É uma transição individual, feita apenas por um jogador em posse, sem a ligação colectiva que a equipa deve ter nessa construção mais apoiada.»

«Ruben Neves tem que esticar o jogo mais rapidamente no flanco.»

«André André adapta-se a tudo isto com a sua intensidade e qualidade de interpretação dos espaços.»

 

Outros diriam: por qué no te callas? Mas eu não. Considero aliás que Lobo está para a bola como algumas divas estão para a ópera: com ele ao leme, até o microfone treme. De reconhecimento e emoção.

Só lamento que actue em transição individual, feita apenas por um jogador em posse, sem a ligação colectiva que a equipa deve ter nessa construção mais apoiada.

Signifique isto o que significar.

Também aqui

Política-(mau)espectáculo

José António Abreu, 24.07.15

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De pé em frente a um palanque vazio. Perguntas de eleitores que divagam e se repetem antes de chegarem ao ponto de interrogação. Vídeos e musiquinhas com letras tão profundas quanto aforismos de telenovela. Deslocação do entrevistado para vários pontos do cenário, sem justificação aparente, de que resultam problemas com a iluminação. Bloqueio da imagem do entrevistado por colocação do entrevistador diante da câmara. Acompanhamento do entrevistado «à saída», com mais uma pergunta e uma resposta a meio do caminho, em posição totalmente forçada. Questões extra no cenário habitual dos noticiários, antecedidas da transmissão da entrada do entrevistado no estúdio e da colocação do microfone na sua roupa. Cumprimentos pouco naturais para aqui, despedidas artificiais para ali.

Só me conseguia lembrar do gestor do canal televisivo na série Borgen que insistia em transformar as entrevistas e os debates políticos em espectáculos. Com uma diferença: na ficção dinamarquesa, alguém tinha o bom senso de recusar o ridículo; na realidade portuguesa, ele é abraçado entusiasticamente.

 

(Imagem recolhida no site da TVI24.)

Um mau serviço ao feminismo

José Maria Gui Pimentel, 10.06.15

O programa Barca do Inferno surgiu no outono  passado com o objectivo louvável de interromper a monotonia machista no comentário político em Portugal. Infelizmente, acabou por ter o efeito inverso, num equilíbrio progressivamente cada vez mais insustentável, que culminou com a saída de Manuela Moura Guedes, esta semana. 

O primeiro episódio foi -- perdoem-me  a franqueza -- dos melhores momentos de humor em televisão nos últimos anos. Três das quatro participantes no painel sentiam visivelmente o peso do desafio, e nem por um momento deixavam penetrar um grama de trivialidade nas respectivas declarações. Completamente descompassada, Marta Gautier -- cuja presença no programa é incompreensível -- surgia ao seu estilo, com comentários non-sense do ponto de vista das companheiras de painel e absolutamente desfasada da actualidade política da semana. A interacção era absolutamente hilariante e, numa primeira emissão, teve a virtude de disfarçar parcialmente a acrimónia visceral existente entre as participantes, que se uniram para zurzir numa desprevenida Marta Gautier. Esta última não viu alternativa senão deixar um programa em que nunca deveria ter entrado. 

O painel foi, então, completado com Sofia Vala Rocha, que se juntou a Manuela Moura Guedes à direita, para fazer frente a Isabel Moreira e Raquel Varela, às quais competia representar a esquerda no painel. E, aqui, o programa transitou -- sem passar pela casa de partida -- para um espectáculo crescentemente desconfortável para o espectador, com um destilar progressivo de animosidades mútuas e insultos muito para além da esfera política.

É difícil dizer em quem começou o azedume, se bem que logo no primeiro programa Isabel Moreira e Manuela Moura Guedes tenham surgido com uma agressividade inesperada (esforço-me aqui para resistir a uma familiar metáfora mais machista), sobretudo tratando-se da primeira emissão. O estilo de ambas faria adivinhar um confronto difícil, mas o resultado esteve muito para lá de um combate meramente duro. Rapidamente, o painel ficou dividido entre esquerda e direita, com o debate a dar lugar a uma tentativa permanente de rebaixamento do adversário.

Em suma, o resultado do programa dá muito que pensar em relação ao caminho para o necessário reequilíbrio do debate político. Afastando-nos -- embora partindo -- deste caso em concreto, preocupa que uma mulher possa entender que a agressividade e a sisudez sejam condições essenciais para ser levada a sério no debate político. Não devia ser, nem (julgo) o é. É muito curioso, de resto, o contraste com outros programas do género, que se desenrolam muitas vezes durante largos minutos sem os intervenientes levantarem a voz.

A política pura e dura na televisão.

Luís Menezes Leitão, 17.03.15

À semelhança da Teresa também eu estou a acompanhar com muito interesse Os Influentes, depois já ter feito o mesmo com a Borgen. Onde já não a acompanho é na relevância dada à actual House of Cards, a meu ver mais uma cópia americana de má qualidade de uma extraordinária série da BBC, a House of Cards, que passou em 1995. Bem podem ter as mesmas iniciais (FU), e Kevin Spacey ter o talento a que já nos habituou, mas a meu ver Frank Underwood nunca baterá Francis Urquhart.

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