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Delito de Opinião

Do meu aspirante de finanças preferido

Teresa Ribeiro, 12.09.09

"...Agora o Francisco José canta "O Amor é Louco", que me faz lembrar o "Cantinho dos Doentes" do Rádio Graça, o favorito do meu coté sopeiral, que tenho e grande, confesso: o maior impulso que sinto diante de um frigorífio é de por-lhe um naperon em cima e só não o faço por vergonha(...) amo as flores de plástico, os barretes de campino dos espelhos retrovisores, os bambis de loiça: no fundo da alma sou um aspirante de finanças e ainda hei-de namorar-te da rua, encostado a um poste". Pergunto-me se mesmo os que não são fãs de Lobo Antunes conseguem resistir a este sentido de humor. E à elegância com que insinua e jamais explica os sentimentos mais poderosos. Gosto de subtileza e dizer "Apetece-me fundir-me em ti como um queijo suiço numa caçarola" é negar ao erotismo todos os estereotipos de que se serve para se expressar por via da escrita.

"Minha jóia querida", "Meu amor" - sinto-me sempre a espreitar pelo buraco da fechadura quando volto a D'este Viver Aqui Neste Papel Descripto. Haverá o direito de fazer esta devassa? Mas depois perco-me quando leio: "Sonhei que tínhamos tido uma rapariga. E se assim for, gostava que se chamasse Maria José em homenagem à mãe dela, de quem sinto a falta como se estivesse longe de mim mesmo". António Lobo Antunes sabia namorar tão bem: "Vivemos tanta coisa juntos que é isso que ponho debaixo da cabeceira, como um travesseiro, para poder dormir"

Lamento, mas por mais que ele se esforce jamais produzirá ficção que se aproxime desta intensidade. Na colecção de cartas que endereçou à primeira mulher a partir do palco da guerra sentimos a vida a pulsar em cada linha. A extrema juventude do autor, o casamento acabado de estrear, o nascimento da primeira filha, "Quando um dia esse bicharoco vier direito a mim a dizer ó Pai, se calhar desato a fugir a dizer ó tia, ó tia" , as angústias do escritor em embrião "Recomecei, conforme te tinha prometido, a porcaria da história (...) Ou é muito boa ou é muito má (Inclino-me mais para a segunda hipótese). Nunca vi nada neste género, talvez por ser, realmente, má demais", a esperança no futuro, "Vamos ser ricos, bonitos, inteligentes e célebres", a esperança no amor: "Deve ser muito difícil viver a dois: todos os dias as pessoas se separam. Não gostaria que isso acontecesse connosco."

Tudo nos comove. E depois há a guerra. A que foi nossa e ainda assim conhecemos tão pouco. Não é por acaso que esta correspondência foi classificada para efeitos de publicação como "Cartas da Guerra". Suponho que foi sobretudo a consciência de que podia valer como documento que levou Lobo Antunes, sempre tão cioso da sua privacidade, a consentir na sua divulgação.

Dificilmente encontraremos um registo que chegue tão perto da realidade como isto: Esta coisa de arriscar o pêlo dá às pessoas um certo panache, uma coqueterie da virilidade e da solidão (...) Entretanto  e para aumentar a minha alegria, armaram-me até aos dentes com uma espingarda automática e uma pistola. E Isto: "A guerra entretanto vai passando por peripécias divertidas: o MPLA condenou-nos todos à morte pelo rádio e diz que a sentença será cumprida este ano! (...) O comissário político preso de vez em quando arenga-nos e jura-nos que nos há-de levar a todos a mão direita (cada mão direita de branco vale 1.500 escudos). E Isto: "Ontem mamaram 2 garrafas de espumante em copos de água, mais duas de vinho do Porto e uma de rosé! Brindes, discursos e uma alegria fictícia carregada de uma angústia insuportável (...) Pode-se viver em plena paz com o medo e o horror e suportá-los ambos sem dificuldades de maior. É uma questão de nos tornarmos de pedra".

Não, não  é preciso ser fã de Lobo Antunes para gostar deste seu legado. Para mim é um livro encantado, que se renova a cada leitura, e a que volto sempre.

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