Até que ponto os homens que mais se arrogaram dar lições aos seus semelhantes em matéria de filosofia política, padrões morais ou conduta cívica eram afinal modelos a seguir nas suas vidas privadas? Eis uma das interrogações subjacentes a uma das mais notáveis obras ensaísticas lançadas nos últimos meses no mercado editorial português, embora com incompreensíveis duas décadas de atraso: Intelectuais, de Paul Johnson.
Deverá o indivíduo ser menos avaliado do que as ideias que representa? Esta é uma das interrogações a que se propõe responder Os Intelectuais, lançado originalmente em 1988.
Daqui ressalta, como Paul Johnson sublinha, “a característica fraqueza moral do intelectual”.
Intelectuais abre com aquele que é considerado o primeiro intelectual dos tempos modernos: Jean-Jacques Rousseau, o autor de Confissões e O Contrato Social. E prossegue com Percy Shelley, Karl Marx, Henryk Ibsen, Lev Tolstoi, Ernest Hemingway, Bertolt Brecht, Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, Edmund Wilson, Victor Gollancz, Lillian Hellman, Cyril Connolly, Norman Mailer, Kenneth Tynan, James Baldwin, Rainer Werner Fassbinder e Noam Chomsky. Uma verdadeira galeria. Muitos haviam sido excessivamente mimados pelas mães, não toleravam o sucesso alheio e votavam ao desprezo os próprios filhos enquanto se deixavam sucumbir por políticos com ‘pulso forte’ e eles próprios revelavam comportamentos tirânicos. O historiador britânico analisa as profundas discrepâncias entre o que pregavam e o que faziam homens que marcaram dois séculos do pensamento ocidental – de Rousseau a Fassbinder, passando por Marx, Brecht, Russell, Sartre e vários outros. Os casos são múltiplos, a conclusão é idêntica: nenhum deles, na pele de cidadão comum, era um bom exemplo.
Eram misóginos, machistas, mitómanos, maus filhos, péssimos pais, devassos, avarentos, demasiado zelosos da fama própria e com uma inveja mórbida da fama alheia. Quiseram mudar as regras da sociedade e até ambicionaram mudar a natureza humana. Mas muitos deles não hesitavam em humilhar e espezinhar quem lhes estava mais próximo – enquanto louvavam alguns dos maiores tiranos de que há memória.
Johnson (na foto), um inglês de Manchester que dirigiu a revista New Statesman e se notabilizou com obras como História do Cristianismo e História dos Judeus, não hesita aqui em abalar as mais conceituadas reputações. Rousseau, que tanto teorizou sobre a educação de crianças e jovens, forçou a mulher a entregar quatro filhos, sucessivamente, a instituições de caridade para não se dar ao incómodo de os criar. Marx, que sonhou “tirar as grilhetas” às classes trabalhadoras, jamais conheceu um trabalhador: vivia às custas do amigo Friedrich Engels, era um tirano no lar e não pagava às criadas que o serviam. “Marx nunca pôs os pés numa fábrica, numa mina ou em qualquer outro local de trabalho industrial em toda a sua vida”, assegura Johnson. Henryk Ibsen, o primeiro porta-voz da emancipação feminina, engravidou uma empregada doméstica sem nunca ter conhecido ou reconhecido o filho. Brecht, autoproclamado lutador pelos direitos humanos, era indiferente à felicidade daqueles que o rodeavam – a começar pelos filhos. Sartre, ídolo de certa esquerda muito solidária, era afinal um poço de egoísmo e o mais contraditório dos pensadores políticos.
Eis outro traço comum entre as personalidades retratadas por Paul Johnson: a sua frequente atracção por ditadores de vários matizes, a quem davam a respectiva caução intelectual. Um fenómeno a que o historiador chama “a fuga da razão”: os maiores déspotas – Hitler, Estaline, Mussolini, Mao – sempre tiveram legiões de intelectuais a justificá-los e a louvá-los. E daí a conclusão máxima desta obra: a inteligentzia pode ser perigosa quando se põe ao serviço da tirania. “Devemos sempre lembrar-nos daquilo de que os intelectuais habitualmente se esquecem: as pessoas têm mais importância do que os conceitos e devem vir sempre em primeiro lugar. O pior de todos os despotismos é a desumana tirania das ideias”, sublinha Johnson.
Excelente remate de um excelente livro.
Intelectuais, de Paul Johnson (Guerra & Paz, 2009). 494 páginas.
Classificação: *****