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Delito de Opinião

A desumana tirania das ideias

Pedro Correia, 07.07.09

Até que ponto os homens que mais se arrogaram dar lições aos seus semelhantes em matéria de filosofia política, padrões morais ou conduta cívica eram afinal modelos a seguir nas suas vidas privadas? Eis uma das interrogações subjacentes a uma das mais notáveis obras ensaísticas lançadas nos últimos meses no mercado editorial português, embora com incompreensíveis duas décadas de atraso: Intelectuais, de Paul Johnson.

Deverá o indivíduo ser menos avaliado do que as ideias que representa? Esta é uma das interrogações a que se propõe responder Os Intelectuais, lançado originalmente em 1988.
Daqui ressalta, como Paul Johnson sublinha, “a característica fraqueza moral do intelectual”.
 
Intelectuais abre com aquele que é considerado o primeiro intelectual dos tempos modernos: Jean-Jacques Rousseau, o autor de Confissões e O Contrato Social. E prossegue com Percy Shelley, Karl Marx, Henryk Ibsen, Lev Tolstoi, Ernest Hemingway, Bertolt Brecht, Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, Edmund Wilson, Victor Gollancz, Lillian Hellman, Cyril Connolly, Norman Mailer, Kenneth Tynan, James Baldwin, Rainer Werner Fassbinder e Noam Chomsky. Uma verdadeira galeria. Muitos haviam sido excessivamente mimados pelas mães, não toleravam o sucesso alheio e votavam ao desprezo os próprios filhos enquanto se deixavam sucumbir por políticos com ‘pulso forte’ e eles próprios revelavam comportamentos tirânicos.
O historiador britânico analisa as profundas discrepâncias entre o que pregavam e o que faziam homens que marcaram dois séculos do pensamento ocidental – de Rousseau a Fassbinder, passando por Marx, Brecht, Russell, Sartre e vários outros. Os casos são múltiplos, a conclusão é idêntica: nenhum deles, na pele de cidadão comum, era um bom exemplo.
Eram misóginos, machistas, mitómanos, maus filhos, péssimos pais, devassos, avarentos, demasiado zelosos da fama própria e com uma inveja mórbida da fama alheia. Quiseram mudar as regras da sociedade e até ambicionaram mudar a natureza humana. Mas muitos deles não hesitavam em humilhar e espezinhar quem lhes estava mais próximo – enquanto louvavam alguns dos maiores tiranos de que há memória.
 
Johnson (na foto), um inglês de Manchester que dirigiu a revista New Statesman e se notabilizou com obras como História do Cristianismo e História dos Judeus, não hesita aqui em abalar as mais conceituadas reputações.
Rousseau, que tanto teorizou sobre a educação de crianças e jovens, forçou a mulher a entregar quatro filhos, sucessivamente, a instituições de caridade para não se dar ao incómodo de os criar. Marx, que sonhou “tirar as grilhetas” às classes trabalhadoras, jamais conheceu um trabalhador: vivia às custas do amigo Friedrich Engels, era um tirano no lar e não pagava às criadas que o serviam. “Marx nunca pôs os pés numa fábrica, numa mina ou em qualquer outro local de trabalho industrial em toda a sua vida”, assegura Johnson. Henryk Ibsen, o primeiro porta-voz da emancipação feminina, engravidou uma empregada doméstica sem nunca ter conhecido ou reconhecido o filho. Brecht, autoproclamado lutador pelos direitos humanos, era indiferente à felicidade daqueles que o rodeavam – a começar pelos filhos. Sartre, ídolo de certa esquerda muito solidária, era afinal um poço de egoísmo e o mais contraditório dos pensadores políticos.
 
Eis outro traço comum entre as personalidades retratadas por Paul Johnson: a sua frequente atracção por ditadores de vários matizes, a quem davam a respectiva caução intelectual. Um fenómeno a que o historiador chama “a fuga da razão”: os maiores déspotas – Hitler, Estaline, Mussolini, Mao – sempre tiveram legiões de intelectuais a justificá-los e a louvá-los. E daí a conclusão máxima desta obra: a inteligentzia pode ser perigosa quando se põe ao serviço da tirania. “Devemos sempre lembrar-nos daquilo de que os intelectuais habitualmente se esquecem: as pessoas têm mais importância do que os conceitos e devem vir sempre em primeiro lugar. O pior de todos os despotismos é a desumana tirania das ideias”, sublinha Johnson.
Excelente remate de um excelente livro.
 
Intelectuais, de Paul Johnson (Guerra & Paz, 2009). 494 páginas.
Classificação: *****

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