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Delito de Opinião

Os quadros das nossas vidas (7)

Teresa Ribeiro, 27.06.09

Há mais de um ano que tentava convencer a minha mãe a remover do quarto todos os resíduos daquela existência larvar a cheirar a pó de talco que eu queria esquecer. Tinha 15 anos, quase 16. Os laços rosa pálido do papel de parede atentavam contra a minha dignidade. As bonecas não combinavam com os Eças, Jorge Amados e Steinbecks que começava a alinhar nas prateleiras.

Até que um dia ela cedeu. Radiante, meti as bonecas na arca, fiz o escalpe das paredes e rumei à Dargil, na 5 de Outubro, onde de vez em quando entrava para namorar discos e os posters que um dia haveria de comprar para pôr no quarto.

Foi então que tive aquela epifania. Entre bandas metálicas e ícones do cinema descobri O Jardim das Delícias de Hieronymus Bosch, o holandês nascido em 1450 que viria a influenciar pintores do século XX como Salvador Dali. Não, jamais me passou pela cabeça levá-lo para pendurar à cabeceira da cama. Não era uma gótica, nem sequer andava lá perto. Mas a verdade é que não conseguia desviar os olhos daquelas criaturas grotescas que estranhamente me ameaçavam, sobretudo as da banda direita do tríptico, que representa o Inferno.

 Jung chamou a Hieronymus Bosch "o mestre do monstruoso". Com efeito nunca, desde que interiorizara a ideia de Inferno, alguém mo conseguira sugerir de forma tão avassaladora. As imagens de pesadelo deste mestre holandês pareciam imbuídas de um poder maléfico que, ao contrário de qualquer expressão artística de inspiração satânica, não me excluía mas implicava.

A força de Bosch está nesta sua estranha capacidade de nos convocar a contragosto para as cenas que pinta, como se recusasse deixar-nos ficar simplesmente a contemplá-las. Neste sentido podemos mesmo considerá-lo um artista de intervenção, embora esse epíteto aplicado a quem viveu no século XV seja, no mínimo, insólito.

Pouco se sabe acerca de Hieronymus Bosch, como convém, de resto, ao autor de uma obra tão enigmática. Especula-se que poderá ter pertencido a uma comunidade herética que defendia o amor livre, o que explicaria a sua forma desassombrada de representar cenas de sexo explícito numa época de profunda repressão moral e sexual. Mais crível é, porém, a versão que o identifica como membro de uma seita ultra-religiosa denominada Irmandade de Maria. Nesse contexto a sua obra terá emergido como uma catarse através da qual expiou os demónios que mais ameaçavam a sua integridade cristã. Não é difícil imaginá-lo. A catarse é o mais clássico indutor da actividade artística, porém na época ninguém ousou fazê-lo com tamanho arrojo, permitindo-se representar, sem qualquer subtileza, o material não editado que provém do inconsciente.

Não por acaso Jung chamou-lhe também "descobridor do inconsciente". E com esta afirmação não pretendia referir-se  apenas ao inconsciente do artista. Foi nesse papel de descobridor que o reconheci, por instinto, naquela longínqua tarde na Dargil. Como não é impunemente que nos mexem no inconsciente, depois disso voltei lá uma e outra vez, sob os mais variados pretextos. Nunca assumia que era para o ver. Mas era. 

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