Os quadros das nossas vidas (6)
TODAS AS APARÊNCIAS PODEM ILUDIR
Toda a pintura genial é um jogo de espelhos, permitindo múltiplas leituras a cada olhar. Talvez nenhuma seja tão ilusória, tão cheia de subentendidos, como As Meninas, de Velázquez (1656). Trata-se, na aparência, de um simples retrato da infanta Margarida, menina de cinco anos, filha mais nova de Filipe IV de Espanha e de Mariana da Áustria. Mas aqui todas as aparências iludem. E a perplexidade aumenta à medida que nos deixamos seduzir por este quadro, considerado por muitos críticos o melhor de todos os tempos.
“Mas onde está o quadro?”, exclamou o escritor francês Théophile Gautier ao ver pela primeira vez As Meninas no Museu do Prado. Pretendia com isto sublinhar a assombrosa intromissão do real na tela de Velázquez, que transforma o espectador em interveniente e cúmplice da sua obra.
Contemporâneo de Rubens e Rembrandt, o sevilhano de ascendência portuguesa Diego da Silva Velázquez (1599-1660) celebrizou-se por um vasto conjunto de quadros que o consagraram entre os melhores pintores de todos os tempos - entre eles um fabuloso Cristo na Cruz (1632), A Rendição de Breda (1634-35) e essa obra-prima do figurativo que é o Retrato do Papa Inocêncio X (1650). Pintor oficial da corte de Filipe IV (III de Portugal), sobreviveu largamente à sua época, fascinando pintores do século XX, como Picasso, Dalí e Francis Bacon. Este último disse dele: "Em Velázquez é muitíssimo extraordinário o facto de haver conseguido conservar-se tão perto daquilo a que chamamos ilustração e ao mesmo tempo revelar tão fortemente as maiores e mais profundas coisas que o homem pode sentir."
Repare-se: quase todos os olhares das personagens deste quadro convergem aqui para quem está a ver, que se torna assim também protagonista da cena. Ao fundo, numa aparição em espelho, surgem os monarcas. Isto significa que eles se encontram, na realidade, no exacto ponto visual do espectador. Esta elevação simbólica do amante de pintura à condição de rei é uma das mensagens subliminares d’ As Meninas, espécie de testamento artístico de Velázquez, já que foi a penúltima obra deste a quem Manet considerava, justamente, “o pintor dos pintores”.
Olhemos ainda com mais atenção: há um pintor do lado esquerdo. É o próprio Velázquez. Vêmo-lo com uma expressão pensativa, mantendo o pincel afastado da tela, como se estivesse a conceber imagens mentais, mergulhado naquilo a que Leonardo chamava cosa mentale – a pintura como arte eminentemente intelectual, muito para além da simples mestria técnica.
Esta obra é fascinante por nos transmitir sugestões simultâneas de transparência e mistério. Várias interrogações nos invadem. Qual o significado do contraste entre a criança banhada de luz e a imagem dos pais reflectida na zona de penumbra? Por que motivo três das cinco janelas estão fechadas? O que pintará o autor na tela que jamais veremos? Julián Gallego, um dos mais destacados historiadores de arte espanhóis, tem razão: Velázquez “só permite que vejamos o que ele quer, que nunca é tudo”.
Ao fundo do ateliê, num plano superior, encontram-se dois quadros com motivos da Grécia antiga. Num deles, está Minerva. Noutro, Apolo. E esta, sendo a mais dissimulada, é porventura a chave que mais nos ajuda a iluminar a obra: para Velázquez, a arte não é só digna de reis – é digna dos deuses. Eis a mensagem que nos surge lá do alto. Cá em baixo, a infanta Margarida apenas serve de pretexto: o pintor mais autêntico é afinal um fingidor, como Pessoa dizia do poeta.