Os filmes da minha vida (42)
QUANDO A CIDADE DORME:
CONDENADOS AO FRACASSO
As imagens iniciais dizem tudo: ruas vazias ao fim de uma desoladora madrugada numa cidade com ar inóspito e ainda não tingida por qualquer raio de sol - sensação de vazio irremediável. Vê-se um carro de patrulha da polícia e um homem solitário, em fuga. Tudo a preto e branco.
Quando a Cidade Dorme - The Asphalt Jungle, no original - inicia-se em estilo de reportagem, com o espectador a observar à distância. Sabemos sem demora que é uma história de gente do mundo do crime, baseada numa novela de W. R. Burnett, mestre de policiais de série B que forneceu muitos originais ao cinema - desde logo O Pequeno César, o papel que deu fama mundial a Edward G. Robinson.
Mas atenção: aqui nem só os marginais são criminosos - as teias da ilegalidade contaminam tudo, mergulhámos numa autêntica cidade viscosa (título português de outro filme de John Huston, bastante mais tardio). Há um advogado corrupto - Alonzo Emmerich, que trai a mulher, o código ético, as leis, as convenções sociais e os próprios marginais a quem se associa. Há o polícia corrupto - o tenente Ditrich, que saca dinheiro aos cabecilhas das redes de apostas clandestinas. Há o detective corrupto - Bob Brannom, antítese dos anti-heróis do género, que não se deixavam contaminar pelos circuitos do crime.
A podridão é tão vasta que, por comparação, não tardamos a simpatizar com o rudimentar grupo de assaltantes de uma joalharia, condenados ao fracasso desde o início: o italiano com o filho doente; Gus, o dono do café decrépito que nasceu fadado para o azar ("todos dizem que tenho mau olhado, nasci assim"); Dix Hanley, filho de uma família outrora próspera do Kentucky que perdeu as propriedades durante a Grande Depressão e sonha com o dia em que as recuperará. "A minha sorte há-de mudar", confessa ele a Doll, a mulher que nada mais tem do que amor para lhe dar: também ela se tornou uma falhada nas mil voltas que dá a vida.
Eis o motivo por que gosto tanto dos filmes de John Huston: são histórias de gente que fracassa, de pessoas desamparadas da sorte, que tudo tentam para afinal nada alcançarem - como os garimpeiros d'O Tesouro da Sierra Madre, os solitários cowboys urbanos d'Os Inadaptados ou o cônsul consumido pelo álcool e por uma paixão impossível na brilhante adaptação homónima para a Sétima Arte daquele que é talvez o mais belo de todos os romances - Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry.
E para que a vida imite o cinema, eis aqui também Marilyn Monroe, infeliz entre as infelizes em Hollywood, num dos seus primeiros papéis no celulóide ainda sem direito a nome na ficha técnica mas já com aquele brilho radioso que a marcou - tão intenso e tão fugaz. Ela é Angela, a amante de Emmerich, a quem trata por "tio" e sonha com viagens que nunca fará.
Nada resulta aqui, todos os planos falham. Por um lapso fortuito. Por uma bala de raspão. Pelos dois minutos que o cabecilha da improvisada quadrilha - Doc Riedenschneider, num excelente desempenho de Sam Jaffe que lhe valeu merecida nomeação para o Óscar de melhor actor secundário - perdeu a contemplar uma mulher, quando fugia com o produto do roubo.
A originalidade desta película, mil vez imitada, é construir-se por inteiro sob a óptica dos ladrões - nunca dos polícias ou de algum detective cínico mas respeitador da lei, como sucede em tantos outros títulos célebres do film noir, género de eleição dos cinéfilos mais fervorosos.
Dix não recuperará a quinta apesar da fuga desesperada, já ferido de morte, rumo ao seu Kentucky natal, como se procurasse recuperar enfim a inocência perdida. Cravelli, o italiano que também acaba mal, bem avisara: "Se quiser ar puro, não o procure nesta cidade."
Os pequenos delinquentes vivem e morrem enquanto a grande delinquência permanece irredimível, inalcançável, nessa penumbra que assinala a fronteira entre a noite que já foi e o dia que ainda não nasceu.
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Quando a Cidade Dorme (The Asphalt Jungle, 1950). De John Huston. Com Sterling Heyden, Louis Calhern, Jean Hague, James Whitmore, Sam Jaffe, John McIntire.