Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Um filme ressuscitado

Pedro Correia, 17.11.12

Comprei bilhete com antecedência para um acontecimento cinematográfico - a estreia em Lisboa, numa sessão única, da cópia recentemente restaurada do filme As Portas do Céu, apresentada há dois meses, no Festival de Veneza, pelo realizador Michael Cimino. Não exagero ao utilizar a expressão acontecimento cinematográfico: trata-se de um filme quase com estatuto mítico por vários motivos. Desde logo por ter uma aura equivalente à de  O Quarto Mandamento / The Magnificent Ambersons, de Orson Welles, quatro décadas depois.

Cimino era em 1980, ano da estreia desta longa-metragem, um dos mais célebres cineastas do planeta depois de ter sido galardoado com o Óscar, dois anos antes, pelo excepcional - do ponto de vista da qualidade cinematográfica e da controvérsia que suscitou - O Caçador, talvez o mais polémico filme de sempre sobre a guerra do Vietname. Tal como sucedeu com Welles logo após ter estreado Citizen Kane, quando se tornou o realizador-estrela da RKO, a então próspera United Artists deu a Cimino liberdade total para rodar o filme seguinte, que foi precisamente este. Um projecto megalómano, desmedido, descomunal, bigger than life, que conduziu o histórico estúdio à falência e condenou o incómodo cineasta a uma longa travessia do deserto.

 

Tal como sucedeu com a película de Welles, tornada quase irreconhecível pelos executivos da RKO à revelia do realizador depois de lhe ter sido dada carta branca para filmar o que quisesse e como entendesse, também esta foi severamente amputada, acabando por circular em cópias adulteradas de 141 ou 149 minutos, que suprimiam segmentos decisivos. A versão original, de 219 minutos, foi praticamente retirada de circulação logo após o fiasco da estreia e do coro de críticas negativas que recebeu nos Estados Unidos: duas gerações de espectadores jamais puderam vê-la.

Felizmente, ao contrário do que sucedeu com o segundo título da filmografia de Orson Welles, cuja montagem original se perdeu para sempre, neste caso foi possível recuperar Heaven's Gate sob a supervisão do próprio Cimino. É um notável trabalho de restauro que faz inteiro jus à magnífica fotografia de Vilmos Zsigmond, agora restituída ao esplendor original.

 

Comprei o bilhete no início da semana antecipando uma provável enchente hoje à tarde no Monumental, onde seria possível ver o filme em ecrã grande, como merece - iniciativa meritória do Festival de Cinema de Lisboa e Estoril, que decorre até amanhã com a exibição de películas de Luis Buñuel, Otto Preminger, Brian de Palma, Monte Hellman, Lindsay Anderson, François Ozon, Hou Hsiao-Hsien, Bernardo Bertolucci, Alain Resnais, Stephen Frears e Abel Ferrara, entre outros realizadores.

Afinal, nesta sessão única, a sala estava praticamente vazia: este filme de culto, debatido na proporção inversa à das oportunidades de ser visto, passou quase clandestino numa Lisboa preguiçosa e distraída, que esbanja sucessivas oportunidades para se cultivar e abrir horizontes - oportunidades que os residentes noutras zonas do País bem gostariam de disfrutar.

 

Três horas e meia de exibição que passaram muito mais depressa do que supus. É uma oportunidade rara, assistirmos à segunda vida deste western atípico que nos revela a face negra do sonho americano - um filme maldito, perseguido desde o primeiro dia por um rasto de controvérsia, amado por um punhado de críticos e renegado pela poderosa indústria de Hollywood. Com deslumbrantes cenários naturais rodados no estado de Montana, uma banda sonora inesquecível e um elenco de luxo - Kris Kristofferson, Christopher Walken, John Hurt, Sam Waterston, Isabelle Huppert, Jeff Bridges, Joseph Cotten (outra coincidência: foi ele o actor eleito de Welles e protagonista de Citizen Kane e The Magnificent Ambersons), Brad Dourif, Mickey Rourke e Willem Dafoe (este no seu primeiro papel em cinema).

Só foi pena a sala quase vazia. Um sinal da crise, que não é apenas financeira - é também de hábitos culturais. A Sétima Arte clássica, vocacionada para a exibição em sala, vai morrendo aos poucos, mês após mês, ano após ano. Um dia, talvez não muito distante, haveremos todos de lamentar o encerramento do último cinema do nosso bairro, da nossa vila, da nossa cidade, do nosso país.

Demasiado tarde, como é costume.

 

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.