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Delito de Opinião

O jogo da morte

Rui Rocha, 27.06.12

 

9 de Agosto de 1942. Kiev, depois de anos de submissão à chibata de Stalin, fora ocupada pelas botas nazis. Alexei Klimenko estava sentado no balneário. Ao seu lado, Trusevich sacudia a poeira da camisola de guarda-redes. Em frente, Goncharenko apertava lentamente os cordões gastos das chuteiras. Quando o oficial das SS entrou, fazendo soar os tacões nos ladrilhos, o pensamento de Klimenko voou para muito longe dali. Para os tempos em que jogava no Dínamo. Nos últimos dias, a memória era o seu único refúgio. Habituara-se a encadear os factos a uma velocidade vertiginosa. Um segundo de ausência do presente valia-lhe por meia vida. Meia vida vale muito quando o presente não vale nada. Recordou a chegada dos alemães à cidade. As atrocidades que presenciara. O campeonato de futebol promovido pelos nazis para iludir a crescente hostilidade da população. A fome. As vitórias fáceis contra as outras equipas locais. A humilhação. O baile de bola contra os húngaros. A vergonha. O jogo fatal de 17 de Julho contra a PGS, uma equipa de militares alemães que a sua, o FC Start, devia ter perdido. E que ganhou. A raiva. O jogo de 6 de Agosto contra a Flaklef, composta por pilotos da Luftwaffe. Que a sua equipa devia ter perdido. E que ganhou. O medo. O agendamento de nova partida contra a Flaklef para esse dia 9 de Agosto. O cansaço. A visita do outro oficial das SS ao balneário antes deste jogo começar. E a advertência de que deviam perfilar-se perante o público, fazer a saudação nazi e gritar Heil Hitler. E perder. As pernas a tremer. Os braços esticados antes de pousarem sobre o peito. O grito de Fizkulthura que saiu, em desafio, da garganta de Trusevich, entrou pelos seus ouvidos e saiu pela sua boca e pela de todos os outros. A dor. Nas pernas, nos braços, na cabeça. Dos pontapés e cotoveladas dos alemães a que o árbitro fechava os olhos. E a que não deviam responder. E a que responderam. Com três golos contra um. Agora, no presente que não valia nada, o oficial das SS aproveitava o intervalo para os ameaçar. Se teimassem em derrotar a Flaklef, o seu destino estava traçado. Klimenko voltou ao campo. As pernas tremiam-lhe de atrocidades, de fome, de vergonha, de raiva, de cansaço. Já só ouvia o grito de Trusevich que, sem saber como, saíra da sua própria boca.  O FC Start marcou mais duas vezes. Tantas como a Flaklef. Quando faltavam alguns minutos para o fim do jogo, Klimenko fintou o guarda-redes alemão. Correu para a baliza deserta. Parou a bola sobre a linha de golo. Virou as costas às redes e chutou-a de novo para o meio-campo. Nesse momento, os olhos de Klimenko viram simultaneamente o presente e o futuro. A humilhação dos alemães e a derrota da propaganda nazi aos seus pés. E os interrogatórios da Gestapo, a tortura, os fuzilamentos ou o campo de concentração que se seguiriam para si e para os seus colegas de equipa. Ninguém dirá que chorou. Porque nesse preciso momento começou a cair sobre o Estádio Zenit uma chuva mansa que lhe lavou as lágrimas.

 

* Escrito a partir de factos reais que podem ler-se, aqui, aqui ou aqui. Ou no livro de Andy Dougan.  Fotografia retirada daqui. Os jogos de vida, como aquele que hoje tem lugar em Donetsk, a umas centenas de quilómetros de Kiev, devem festejar-se independentemente do resultado. Os jogos de morte são bem outra coisa.                    

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