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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (40)

Pedro Correia, 19.06.12

 

A TROCA:

TODA A DOR DO MUNDO NUM OLHAR

Christine Collins existiu realmente. Mas não é isso que interessa. O importante é registar o seguinte: Christine Collins é já uma personagem fundamental na Sétima Arte. Clint Eastwood, no seu filme A Troca, elaborou um dos melhores retratos femininos das últimas décadas no cinema americano. Dando a Angelina Jolie, protagonista desta película inesquecível, o papel da sua vida.

Nas mãos de outro cineasta, A Troca não passaria de um docudrama banal, puxando à lágrima fácil, semeado de rodriguinhos. Eastwood, no seu classicismo depurado, segue o percurso oposto: expurga o filme de qualquer indício de ganga televisiva, centrando-o no retrato psicológico de uma mulher. O olhar, as dúvidas, a angústia, a contenção, a febre, as palavras e o silêncio de uma mulher confrontada com o pior dos cenários: o rapto de um filho.

Há uma banda sonora fabulosa – composta pelo próprio Clint Eastwood – a sublinhar o percurso desta mulher que viu a vida soçobrar por um inesperado capricho do destino. Desde os primeiros acordes, que acompanham as imagens de uma Los Angeles a preto e branco, num recuo temporal de oito décadas, pressentimos que esta toada musical, repassada de uma infinita melancolia, jamais nos abandonará até ao fim do filme. E mesmo depois de as luzes se acenderem permanecerá connosco. Porque o drama que abalou Christine Collins podia suceder a um de nós – é algo que acontece demasiadas vezes nos labirintos das nossas ruas.

Macabra ironia: tudo se passa na Cidade dos Anjos – Los Angeles, afinal habitada por mil demónios, incluindo as forças da ‘autoridade’, que utilizam métodos idênticos às corporações do crime. Questionar estes métodos, na América da Lei Seca e de Calvin Coolidge, poderia ser um passaporte para uma clínica de doentes mentais – cenário kafkiano caucionado por psiquiatras sem escrúpulos.

Christine passa por tudo isto – e muito mais. Vêmo-la sempre sob um intenso foco luminoso que contrasta com as superfícies negras que lhe emolduram o rosto quase imaterial. Eastwood dirige um verdadeiro bailado de luzes e sombras nas cenas capitais deste filme modelar, herdeiro directo do realismo crepuscular das velhas fitas da Warner Brothers. Tudo nos fala desse tempo irrepetível – automóveis, carros eléctricos, chapéus e penteados, numa irrepreensível reconstituição de época.

Mas o essencial do filme é Angelina Jolie, aliás Christine Collins, mulher que nunca voltará a ter um sono tranquilo na sua vida, assombrada pelo maior dos pesadelos. Despedimo-nos dela quando o filme acaba. Mas é uma despedida vã: o seu rosto dorido, trespassado de uma tristeza sem fim, há-de acompanhar-nos para sempre, como o de Ingrid Bergman em Casablanca. E continuamente nos interrogaremos como é possível concentrar toda a dor do mundo naquele olhar.

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A Troca (The Changeling, 2008). De Clint Eastwood. Com Angelina Jolie, John Malkovich, Riki Lindhome, Jeffrey Donovan.

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