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Delito de Opinião

Grandes contos (15): Irwin Shaw

Pedro Correia, 14.04.12

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“But Paris was a very old city and we were young and nothing was simple there, not even poverty, nor sudden money, nor the moonlight, nor right and wrong nor the breathing of someone who lay beside you in the moonlight.”

Ernest Hemingway, A Moveable Feast

 

E se de repente uma rua - uma vulgar rua de traseiras numa grande cidade - se tornar um microcosmo de um povo ou de um país? É um cenário admissível: não há impossíveis em ficção. E é um cenário que, pela mão de um escritor de talento, ganha a dimensão de uma tela viva.

Senti isto ao ler Amor numa Rua Escura, singular homenagem de Irwin Shaw a Paris, numa confirmação de que a capital francesa é capaz de seduzir sem remissão os olhares norte-americanos.

Shaw (1913-84) exilou-se voluntariamente na Europa em 1951, no auge das perseguições maccarthistas, depois de ter sido incluído na lista negra dos estúdios de Hollywood ao assinar petições em defesa aberta de John Howard Lawson e Donald Trumbo, argumentistas de cinema como ele.

O contraste entre os sonhos asfixiados na América desses anos da Guerra Fria e a esperança renovada num Velho Continente que irrompia das cinzas do mais trágico conflito de todos os tempos está bem patente neste seu conto sobre um jovem engenheiro norte-americano que aguarda uma chamada telefónica para a namorada em Nova Iorque enquanto lê Madame Bovary «para melhorar o seu francês» num minúsculo apartamento de primeiro andar arrendado na estreita rua por detrás do Boulevard Montparnasse.

Dois meses depois da chegada a Paris, naquele fim de Verão, tudo ainda ali está envolvido numa atmosfera de estranheza para este forasteiro, Nicholas Tibbell. «Todos os franceses lhe pareciam possuir um vocabulário ligeiramente arcaico e sublime, e sempre lhe soavam como se estivessem a fazer um discurso aos senadores, no Forum, ou a exortar os atenienses a matar Sócrates. Longe de o aborrecer, esta particularidade dava um acréscimo de misterioso encanto aos seus contactos com os habitantes do país e, nas raras ocasiões em que compreendera uns termos de calão, sentira que um picante se acrescentara às suas relações com a língua.»

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Passa da meia-noite em Paris, são oito horas em Nova Iorque. As duas cidades estão separadas por 5500 quilómetros. Mas a diferença não é apenas de fuso horário. Aquela rua exígua e antiquada fervilha de vida, em perfeito contraste com a modorra insonorizada do moderno prédio onde mora Betty, a namorada de Tibbell.

Há um par de namorados beijando-se como sombras furtivas no umbral de uma porta - «o que era ser francês, pensava ele, e não sentir vergonha do desejo, e ser capaz de o expor com tanta franqueza na via pública.» Mais adiante, uma jovem de cabelo louro, «no inevitável estilo Brigitte Bardot daquele ano», discutia acaloradamente com o ex-namorado, um parisiense chamado Raoul, dono de uma Vespa. Ela gritava e chorava e barafustava. O pai dela, que «aparentava ser um engenheiro respeitável ou um funcionário público», surge em defesa da filha, chamando «porco» ao homem da motorizada. Ele acaba de lhe anunciar que irá casar com outra, ela ameaça suicidar-se. «No país estrangeiro que era a França, onde o código de conduta entre os sexos era, para ele, na melhor das hipóteses, um mistério titilante», Tibbell «apenas podia desejar que tudo acabasse em bem».

Desfilam mais personagens. Uma mulher de sotaque espanhol abandona bruscamente um Alfa Romeo conduzido por um homem de fato preto que a persegue em vão. E a noiva de Raoul, que surge mais tarde, à pendura na Vespa. Tudo sublinhado pelo coro grego das velhas da vizinhança, que vão subindo e descendo persianas à razão inversa dos picos de emoção destes pequenos dramas românticos desenrolados na rua.

 

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Deste conto editado originalmente em 1965 (que li na versão portuguesa das Publicações Europa-América, com tradução de Carmen González, embora esteja igualmente editado com a chancela Livros do Brasil) irrompem genuínas vozes humanas com o seu cortejo alternado de esfuziantes alegrias e amargas decepções. Há amor e fúria, desejo e ódio. Sem sermões morais e com o autor confinado no seu reduto de espectador atento.

Romancista de talento e mérito (Os Jovens Leões; Lucy Crown; Homem Rico, Homem Pobre; Duas Semanas noutra Cidade), Irwin Shaw era igualmente um excelente contista, como esta saborosíssima história de um americano em Paris demonstra e a colectânea Short Stories: Five Decades (1978) confirma.  

 

A leitura de Madame Bovary ficou a meio, o telefonema para Betty acaba por não se concretizar. Quem quer a vida imaginada quando tem a vida real - promissora e palpitante - ao pé da porta?

Terminado o conto, chega-nos como eco distante uma frase emblemática de Hemingway, outro americano que se apaixonou irremediavelmente por França: «Se tiveres a sorte de viver em Paris enquanto jovem, para onde quer que fores durante o resto da tua vida levarás essa experiência contigo. Porque Paris é uma festa móvel.»

Uma frase tão sugestiva, tão sedutora. E tão verdadeira.

 

Anteriores contos desta série:

Nevoeiro na Cidade, de Mário Dionísio

Empresta-nos o Seu Marido?, de Graham Greene

Um Cântico de Natal, de Charles Dickens

Passeio Nocturno, de Rubem Fonseca

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