Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Dickens, o homem que travou Marx

Pedro Correia, 14.02.12

 

Se há um escritor estreitamente associado a uma cidade e a uma época concreta, esse escritor é Charles Dickens. A cidade é Londres, a época é a da Revolução Industrial: nada do que sucedia naquele tempo e naquele espaço lhe era alheio. Dickens foi uma notável testemunha daqueles dias de profunda transformação da paisagem urbana inglesa que por sua vez marcava a irreversível transição da era agrícola para a era da locomotiva a vapor. E deixou isso bem documentado na sua obra, lida avidamente por legiões de contemporâneos sedentos de justiça.

Se alvo moveu este escritor que desfrutou de imensa popularidade ao longo de quase toda a sua vida adulta, foi precisamente o ideal de justiça."Nenhum autor daquele tempo teve um impacto comparável ao de Dickens. Ele fala da corrupção política e financeira, das desigualdades sociais, da exploração infantil... Temas que estavam aos olhos de todos mas que ninguém chegava a denunciar ou a expor com tanta crueza", sublinha Alex Werner, comissário da exposição Dickens e Londres, organizada no Museu de Londres para assinalar o bicentenário do nascimento deste homem que tem como epitáfio na Abadia de Westminster, escrito por mão anónima: "Amou o pobre, o miserável e o oprimido." Em personagens como David Copperfield ou Pip (de Grandes Esperanças), de cunho claramente autobiográfico, soube narrar a perplexidade infantil perante a inapelável miséria humana.

 

Foi um viajante incansável - atravessou duas vezes o Atlântico e em ambas as visitas aos EUA foi recebido por inquilinos da Casa Branca. Percorreu o Reino Unido de lés a lés e documentou nos seus escritos, primeiro na imprensa e depois em volumes que foram tendo sucessivas reimpressões, as miseráveis condições de vida das classes trabalhadoras do país que Karl Marx anteviu como o primeiro onde ocorreria a grande revolução proletária. Se essa revolução não eclodiu, como salientava há dias o professor universitário espanhol Ignacio García de Leániz Caprile no El Mundo, isso deveu-se à introdução de "mecanismos correctores" naquela sociedade marcada pela injustiça. "Poucas vezes uma literatura tão cheia de bons sentimentos como conhecedora do mal em todas as suas formas, e sempre ligada à realidade, teve tanta dimensão política e transformadora (...). Para Dickens, a boa literatura era a política por outros meios.»

Graças ao autor de Oliver Twist, um cristão convicto e consequente, a reforma travou o passo à revolução. Este é um motivo acrescido para celebrar, neste ano do bicentenário do seu nascimento, um escritor que, ao contrário de Zola, não necessitou de descer às minas de papel e caneta na mão para indagar das miseráveis condições de vida do mundo do trabalho: ele conhecia-as desde muito novo. Com apenas 12 anos, tendo o pai preso por dívidas, começou a trabalhar - dez horas por dia - numa fábrica quase em ruínas, pejada de ratazanas, numa decrépita margem do Tamisa. "Não há palavras para descrever a secreta agonia da minha alma, a sensação de ter sido rejeitado e de ter perdido a esperança", escreveu em David Copperfield, a mais autobiográfica das suas obras.

 

 

Se a Londres daquele tempo - com todas as características do que hoje chamaríamos uma metrópole do Terceiro Mundo - deu lugar à cidade moderna e civilizada dos nossos dias, isso deve-se também a Dickens, um escritor indissociável da capital britânica. Por isso Londres justamente evoca agora - nomeadamente em largas romarias turísticas à sua casa-museu na Rua Doughty - este intelectual que nunca deixou de estar profundamente ligado à vida e acabou por transcender todas as línguas e fronteiras. Autor intemporal, embora profundamente ancorado na sua época. Verdadeiro autor universal sem nunca deixar de ser o maior cronista da sua cidade adoptiva, onde residiu grande parte da vida e viria a morrer em 1870, aos 58 anos.

Uma e outra vez o lemos, sem deixarmos de nos indignar e espantar e comover com o que escreve. Como nestas linhas de David Copperfield: «Que sítio assombroso me parecia Londres quando a vi à distância. Acreditei que todas as aventuras dos meus heróis favoritos podiam acontecer ali, e vagamente me habituei à ideia de que ali havia mais maravilhas e raridades do que em qualquer outra cidade da Terra.»

Os grandes escritores são como os soldados de que nos falava o general Douglas MacArthur. Nunca morrem, apenas se vão dissolvendo no horizonte.

24 comentários

Comentar post

Pág. 1/2