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Delito de Opinião

O homem e a sua (no caso, a minha) circunstância

Rui Rocha, 15.11.11

 

Ultrapassei os 40 anos de idade sem grandes danos visíveis. Um poucochinho menos de olhos. Um nadinha mais de barriga. As orelhas são o que sempre foram. O nariz tem a amolgadela que ficou daquela épica final do basquete escolar em que fiz 3 pontos com o septo nasal. A somar a isso, uma cicatriz muito disfarçada (embora o ortopedista sul-americano que fez a sutura tenha realizado um esforço sério no sentido de deixar  uma marca para toda a vida) e que foi provocada pelo embate de uma tábua na cabeça, em pleno AKI, num raríssimo episódio em que me preparava para cometer bricolage. É certo que análises realizadas após 15 anos de irresponsabilidade indicam um problemazinho nos triglicerídeos. Mas, não é um desvio colossal! Os sacanas ainda não foram promovidos a tetraglicerídeos ou reclassificados em colesterol. No ácido úrico é que já não há folga nem almofada. Não posso continuar a acumular picanha, mexilhões, alheira de caça (não, Armando, ninguém te chamou) e espinafres. Nesse caso, tanto pior para a sopa de espinafres. É uma decisão dura, mas não há alternativa. Daqui a 15 anos, quando fizer análises outra vez, os benefícios desta medida brutal serão evidentes. Assim sendo, com o cabelo rigorosamente da cor que o ADN lhe deu, e embora a estatística não apoiasse essa tese, nada impedia que este cidadão continuasse a aspirar à imortalidade. Desde que, naturalmente, fosse possível resistir à tentação da bricolage. E à sopa de espinafres. Dah, imortalidade..., atira-me o leitor. Pois digo-lhe que já me aconteceram coisas que, vistas daqui, parecem bem mais improváveis. Ou existirão muitos que, na mesma vida, tenham levado com uma tábua na cabeça em pleno AKI e marcado 3 pontos com o septo nasal? Ah pois é! Subitamente, todavia, a harmonia foi definitivamente abalada quando, numa operação rotineira de lavagem de mãos, encarei o espelho e, oh tragédia!, oh desgraça!, oh memorando da troika na parte que diz respeito à Banca!, o vi ali, mesmo por cima da orelha esquerda. O primeiro cabelo branco! O impulso foi, naturalmente, para o arrancar sem piedade. Mas, já na iminência do gesto irreflectido, a vastíssima experiência de vida  aconselhou um período de reflexão: "calma, não viste já tantos ministros da economia declararem, num momento de vertigem, o fim da crise, comprometendo assim toda a escassíssima credibilidade que lhes restava? Sim! E não ouviste já dizer, num cabeleireiro, que quando se arranca um cabelo branco nascem logo milhares? Pois ouvi". Foi deste diálogo interior que nasceu o pensamento estratégico e o plano de acção com base científica. Se Portugal ganhar à Bósnia, arranco o sacana. Caso contrário, ele fica. É bem sabido que um mal nunca vem só e não posso correr o risco de acordar amanhã com a selecção fora do Euro de dois mil e coiso e com a cabeça tão branca como a do Avô Cantigas. É certo que, se a coisa correr mal, será necessário tomar medidas adicionais. Sobre este ponto, mantenho uma certa reserva. Levantarei apenas a ponta do véu (sim, entretanto comprei um véu, não vá o diabo tecê-las) para dizer que ali o Hulk foi a fonte de inspiração da solução que congeminei e que espero, a bem do futebol nacional, não ter de pôr em prática. E é assim que me encontra, leitor. Angustiado, é certo, mas também muito determinado. Entretanto, não há texto profundo, como é o caso deste, que não deva concluir-se com uma citação de Ortega Y Cassette. Pois aqui estou, homem, com a minha circunstância. No caso concreto, esta tem todo o insustentável peso de um cabelo branco.

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