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Delito de Opinião

"Noutro País", sem consoantes

Pedro Correia, 14.11.11

 

Leio uma biografia de Ernest Hemingway distribuída gratuitamente com o Expresso. Na capa, o nome do autor -- um tal Hans-Peter Rodenberg, sobre o qual ficamos a saber quase nada -- vem impressa em corpo muito reduzido, enquanto o autor do prefácio, Miguel Sousa Tavares, surge em letras muito mais visíveis apesar de escrever apenas três páginas. A obra está traduzida em acordês, numa apressadíssima tentativa de beber o ar do tempo. E nem Sousa Tavares -- público e notório opositor a essa aberração que é o "Acordo Ortográfico" de 1990 -- escapa à fúria avassaladora dos acordistas, que querem moldar tudo e todos ao seu padrão, mesmo quem não comunga dessa obsessão de extermínio das consoantes ditas mudas.

Imagino a irritação de Sousa Tavares ao ver-lhe atribuída, logo na primeira página do seu prefácio, a autoria de uma palavra que nunca escreveu -- a palavra corretamente. Em que, por ausência do C, o E sofre uma mutação eufónica. Este é, de resto, um dos efeitos mais perniciosos do dito "acordo": em nome da inalcançável unificação ortográfica, que jamais se concretizará, aumentam drasticamente as diferenças fonéticas entre Portugal e o Brasil. A supressão das consoantes ditas mudas (e porque não também o H?) reforçará a nossa tendência para fechar a pronúncia das vogais. Isso sucederá inevitavelmente com palavras que vejo estampadas nesta obra. Palavras como ator, reação, reflete, aspeto, adota, perspetiva, afetado, correção e redator. Não custa vaticinar que as sílabas átonas vão crescer e multiplicar-se na pronúncia do português de Portugal, precisamente ao contrário do que sucede no Brasil.

Não há tempo para tudo: enquanto andavam obcecados na fixação das regras do acordês, os responsáveis editoriais por esta obra descuraram o resto. Só isto explica que As Verdes Colinas de África (1935), uma narrativa autobiográfica de Hemingway, seja aqui apresentada como "romance", coisa que manifestamente não é, e o "magnífico Adeus às Armas" (1929), como justamente o designa Sousa Tavares no prefácio, não venha nunca mencionado com o nome correcto na tradução desta biografia, onde aparece com uma estranha designação: Noutro País.

Ironia das ironias: uma obra tão apostada em alinhar com o "acordês", adaptando a norma ortográfica portuguesa à brasileira, altera afinal a ortografia norte-americana, reconvertendo-a à norma inglesa num topónimo como Pearl Harbor (pág. 93), aqui escrito Pearl Harbour, ao clássico estilo britânico. Apesar de Pearl Harbor se encontrar no arquipélago do Havai, território dos Estados Unidos.

Mais depressa se apanha um falso "modernizador" da língua do que um coxo verdadeiro...

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