Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Antes robalos que roubá-los

Rui Rocha, 08.11.11

Foi em Setembro que se conheceram. Ela, pudica, trazia a face oculta. Eles eram duas crianças a viver esperanças, a saber sorrir. Ela tinha cabelos louros, ele tinha tesouros para repartir. Ele lá lhe disse, a medo: "O meu nome é Armando e o teu qual é?" Ela corou um pouquinho e respondeu baixinho: "Sou a Cinderela". Estavam 40 graus à sombra na Caparica. Para lá da mata havia uma sucata. Mas, ali da praia não se via pois estava tapada pelos Penedos. Assim ficaram, de mão dada, a ouvir o mar. "Escutas", Cinderela, perguntou  Armando. "Escuto, Armando". Emocionado, ele entoou uma canção que o primo José, emigrado em Paris, lhe ensinara ao telefone: " Onira ou tu vudrá, can tu vudrá,  Então semera em cordas, lorca lamor sera mor, Tute lavi sera paralela à catamaran, Aos colores denanananam". Ela, que sabia francês, disse-lhe que queria ir a Porto Côvo. Uns olhares envergonhados e são namorados sem ninguém pensar. Foram juntos ainda um outro dia, como por magia, no autocarro, em pé. Se fossem vê-los, à tardinha, saberiam que Cinderela teve apetite. Havia um pessegueiro na ilha, plantado por um vizir de Odemira, que estava carregado de pêssegos. Mas, a ilha agora pertencia ao Godinho. "Antes robalos que roubá-los", empertigou-se Armando. Assim disse e assim fez. Foi-se ao mar com uma Vara, uns quantos trouxe e assim os assaram, na praia, ao pôr-do-sol. O tempo foi passando. Armando construiu uma cabana junto à praia. Pediu um crédito à Caixa e outro ao BCP. Mas, para lhe dar consistência, também utilizou cimento. Mais tarde, nasceu uma criança. Chamou-se o médico parteiro, Dr.  Pinto Monteiro. A criança era loura e ele separou-a da mãe com a sua própria tesoura. Cinderela prendeu-se de angústias e hesitou na escolha do nome. Armando, impaciente, tomou o assunto em mãos: "decidiremos até que o Sol se ponha". Chamaram-lhe Noronha. E o padrinho foi o Marinho. Fez-se uma festança em casa de um bom amigo que também deu o vinho. Infelizmente, não era grande coisa. Alguns dos presentes ouviram mesmo Armando queixar-se ao anfitrião: "C' amargo, Correia". Os anos passaram e a vida separou-os. Foi em Novembro que Cinderela partiu. Levava nos olhos as chuvas de Março. E nas mãos um mês frio de Janeiro. Armando lembra-se que ela lhe disse que o corpo dele tremia. E ele queria ser forte.  Respondeu que tinha frio. Falou-lhe do vento norte da ria de Aveiro. Como ele tremia, meu Deus. Amou Cinderela como nunca amou ninguém. Foi louco? Não sei, talvez! Mas por pouco, muito pouco, ele voltaria a ser louco e amá-la-ia outra vez. Sim, ele sabe que tudo são recordações. Sim, ele sabe que é triste viver de ilusões. Mas, ela foi a mais bela história de amor que um dia lhe aconteceu. Agora, dizem-lhe velhos amigos, o melhor seria mesmo destruir essas escutas recordações para acabar com o sofrimento de vez.

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.