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Delito de Opinião

O último dia do general De Gaulle

Pedro Correia, 09.11.11

 

Aquele parecia ser um dia igual a todos os outros na casa da família De Gaulle desde que o general abandonara o Palácio do Eliseu, ano e meio antes. Um dia de Outono, com as folhas das árvores do bosque que rodeava a mansão La Boisserie já pintadas de castanho dourado. Charles de Gaulle, a poucos dias de completar 80 anos, levantou-se cedo, como sempre sucedia. Saiu do quarto também como sempre fazia, já com o habitual fato escuro, de gravata igualmente escura sobre uma camisa branca. E fez a tradicional caminhada -- sempre em passadas largas, costume que adquirira desde os tempos de jovem, quando frequentava a Academia Militar -- pelo frondoso parque da sua propriedade, situada na aldeia de Colombey-les-Deus-Églises. Um lugarejo perdido no norte de França que o general pôs subitamente no mapa. Ao fim dessa segunda-feira, 9 de Novembro de 1970, o nome daquela aldeia seria pronunciado nos serviços informativos de todo o mundo.
De Gaulle e a mulher, Yvonne, viviam ali em reclusão voluntária após o general ter decidido abandonar a Presidência da República. As glórias mundanas, que sempre depreciou, deram lugar à atmosfera espartana e tranquila de La Boisserie, longe dos flashes dos fotógrafos.

O homem que durante a II Guerra Mundial foi o rosto e a voz da França livre irritou-se ainda naquela manhã ao ler num jornal uma crítica negativa ao seu recém-lançado livro, Mémoires d’ Espoir. E saiu para o seu passeio. Havia vento. Por isso Yvonne não o acompanhou naquela que havia de ser a última caminhada de um homem que parecia infatigável.
Comeu com apetite ao almoço, conversou com um vizinho sobre espécies de árvores que pretendia plantar. Às 18.30 foi à cozinha, onde a mulher combinava com a empregada as ementas da semana, e pediu-lhe um endereço. Caía já a noite. Cumprindo outro ritual, assistiu ao noticiário regional na TV enquanto se entretinha com um naipe de cartas na sua mesa de brídge.
De súbito Yvonne ouviu um grito: “Sinto-me mal! Nas costas...” O maior gigante da política francesa acabava de tombar, fulminado por um aneurisma. Morte súbita, como talvez desejasse este homem de 1,92m que fora duas vezes ferido na I Guerra Mundial, vira Hitler pôr-lhe a cabeça a prémio, fora condenado à pena capital pela justiça fantoche do marechal Pétain e -- já presidente -- escapara quase por milagre a várias tentativas de assassínio, incluindo uma saraivada de tiros contra o seu carro.
De uma grandeza singular em vida, foi-o também no momento em que partia. Primeiro presidente francês católico praticante, quis ser enterrado no humilde cemitério da aldeia, após missa celebrada pelo pároco. Sem honras de Estado. Sem flores nem sermões. Sem a presença dos ilustres da política francesa e mundial, como recordava faz agora um ano a Paris Match, numa excelente edição especial sobre o 40º aniversário da sua morte.

“O sangue seca depressa”, costumava dizer De Gaulle. Mas o exemplo de alguns homens jamais se apaga.

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