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Delito de Opinião

Por que há-dem pagar-lhe?

João Carvalho, 25.10.11

 

O que mais me toca é haver ex-políticos que recebem do Estado as famosas subvenções vitalícias de que se fala e, mês após mês, andem há anos a dar largas ao seu espírito altruísta, ao seu lado benemérito, à sua veia filantrópica: «Aplico o dinheiro todo em instituições de solidariedade» — diz o socialista retirado e presidente da Mota-Engil Jorge Coelho.

Há gente assim, gente que entrega o dinheiro todo como se tivesse uma arma apontada às costas. Entregam-no todo. Todo-todo? Todinho mesmo? Nunca ficou um centimozinho nestes anos que já passaram? Claro que não: «Aplico o dinheiro todo em instituições de solidariedade» — garante Jorge Coelho. Mesmo que seja sob anonimato, todo é todo, não é?

Recusa ele receber a subvenção que sai dos meus impostos? Não. Recusa receber a subvenção para aliviar as contas do Estado? Também não. O que é que ele faz? Desprendido do mundo de perdição dos homens, desinteressado dos bens materiais, recebe o vil metal e dá o mais abnegado dos exemplos apressando-se a sacudi-lo para longe: «Aplico o dinheiro todo em instituições de solidariedade» — assegura Jorge Coelho. Bem longe dos comuns mortais, portanto.

 

Jorge Coelho só precisa de ter cuidado com as palavras. Vem-me à ideia que, quando vou na rua e dou algum dinheiro a um pedinte, jamais me passaria pela cabeça pensar que apliquei dinheiro num pobre. Quando posso doar algum dinheiro a uma instituição de apoio humanitário, não me vejo a dizer que apliquei dinheiro numa obra que cuida dos que mais precisam. Aplicar dinheiro é um tique capitalista que nem me ocorre, menos ainda para legendar um donativo.

Eu sei, Jorge Coelho, que o socialismo está démodé. É verdade, meu caro, mas tente por um momento recuar ao vocabulário dos seus velhos tempos, pegue na subvenção vitalícia deste mês, do mesmo modo que deve andar a pegar há dezenas de meses, e diga para si mesmo em voz alta que vai aplicar o dinheiro todo em instituições de solidariedade. Soa-lhe bem? Aplicar o dinheiro a ajudar os outros parece-lhe uma linguagem adequada ou sequer normal? Como vão longe aqueles tempos, Jorge Coelho, não acha?

 

Pode Jorge Coelho continuar a vestir-se como um socialista retirado e a falar como um liberal insensível, com as celulazinhas cinzentas canalizadas para a aplicação de dinheiros. Pode, mas deve fazer coisa diferente do que aplicar a subvenção por conta própria, que não é para isso que a gente lha paga. Deve recusá-la e não ter pretensões de se substituir ao Estado, que é de onde ela lhe chega aos bolsos. Deve abdicar dela, que é só o que se espera de um antigo socialista que já teve outrora algumas preocupações de solidariedade. Afinal, por que é que os portugueses há-dem pagar-lha?

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