Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Estrelas de cinema (10)

Pedro Correia, 22.10.11

 

HEMINGWAY REVISITADO POR WOODY ALLEN

****

Os intelectuais norte-americanos são herdeiros directos da cultura europeia: nada menos surpreendente que lhe prestem homenagem. E em nenhuma outra área artística isso é tão notório como no cinema. Foram, de resto, cineastas nascidos no Velho Continente que moldaram o cinema americano -- cineastas como Charles Chaplin, Josef von Sternberg, Fritz Lang, F. W. Murnau, Frank Capra, Ernst Lubitsch, Max Ophüls, Alfred Hitchcock, Jacques Tourneur, Billy Wilder, Otto Preminger e Elia Kazan.

Woody Allen é um ilustre herdeiro desta linhagem, mas está muito longe de ser único, ao contrário do que alguns críticos apressados garantem. Aliás o que este nova-iorquino de gema confirma, nos seus filmes mais recentes, é uma atracção pela Europa que vem desde o início da sua obra. Allen teve a sua fase bergmaniana (Interiors, 1978) e felliniana (Stardust Memories, 1980) muito antes de sonhar sequer que viria a filmar em Paris, Londres, Veneza ou Barcelona.

O aspecto mais interessante de Meia-Noite em Paris, filme em exibição nas salas portuguesas, é a forma como cruza cinema com literatura: a sua homenagem à Cidade Luz é, afinal, uma homenagem a um dos expoentes máximos das letras norte-americanas -- Ernest Hemingway. As falas de diversas personagens do filme -- Gertrud Stein, Scott Fitzgerald e o próprio Hemingway -- são extraídas de trechos da magnífica homenagem que o autor de Por Quem os Sinos Dobram fez à capital francesa no seu livro-testamento, Paris é uma Festa. E consegue fazê-lo com uma eficácia cinematográfica que deve tanto aos seus dotes artísticos como à sua longa experiência como artesão da Sétima Arte -- uma experiência que não o impede de cair em erros de casting, como a escolha de Owen Wilson para personagem principal ou a inclusão no elenco de Carla Bruni, muito menos expressiva do que a estátua do Pensador, de Rodin.

Meia-Noite em Paris é, no fundo, um fascinante conto de fadas -- também nada de novo na obra de quem dirigiu A Rosa Púrpura do Cairo (1985) e Toda a Gente Diz que te Amo (1997). A novidade aqui é toda a fantasia ser protagonizada por nomes que se celebrizaram na vida real como figuras fundamentais da cultura e do espectáculo -- de Picasso a Buñuel, de Gauguin a Cole Porter, de Degas a Jacqueline Baker, de Toulouse-Lautrec a T. S. Eliot, de Juan Belmonte a Salvador Dalí.

Os deliciosos anacronismos que povoam o filme, conferindo ao espectador a ilusão do regresso a uma era de ouro que afinal nunca existiu, limitam-se a seguir a pista que o próprio Hemingway deixou impressa no seu livro de memórias parisienses - alusão a um tempo irrepetível, em que foi "muito pobre e muito feliz".

Num dos seus livros, Paul Auster -- outro americano que presta tributo sem complexos à cultura europeia -- ensina-nos que "razão e memória raramente andam a par". Talvez por isso, alguns dos mais talentosos cultores da saudade enquanto expressão artística, como Allen e Hemingway, parafraseando Pessoa, chegam a fingir que é nostalgia a nostalgia que deveras sentem.

Onde começa o artifício e termina a realidade? É irrelevante. A arte tanto imita a vida como a vida imita a arte: eis um princípio válido para todas as horas de todas as épocas em todas as cidades do mundo. Experimentem atravessar a Ponte Alexandre III à meia-noite na próxima vez que visitarem Paris. Daí pode resultar um filme ou um livro. Daí pode resultar um daqueles momentos mágicos que funcionam como fios que vão tecendo a eternidade.

 

Meia-Noite em Paris (Midnight in Paris, 2011). De Woody Allen. Com Owen Wilson, Rachel McAdams, Marion Cotillard, Kathy Bates, Adrien Brody, Carla Bruni, Michael Sheen

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.