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Delito de Opinião

A nota de dólar

José António Abreu, 18.10.11

Não sou economista e percebo isto-assim-acima-de-nada (estou a indicar a ponta do dedo mindinho) acerca do funcionamento dos mercados financeiros (o que, agora que penso no assunto, me faz ter pelo menos um ponto em comum com muitos economistas) mas deixem-me pegar na nota de dólar que o Luís M. Jorge ontem aqui colocou para uma curta reflexão. Nos EUA, como na Europa, o problema da crescente diferença de rendimentos entre os mais ricos e os mais pobres tem sido motivo frequente de debates. Ainda bem; é uma questão que merece ser debatida. Considerem esta a minha contribuição.

 

Comecemos pela pergunta: por que têm os ricos ficado cada vez mais ricos? Assim de repente, por três razões: facilidade de (e conhecimentos para) investir em qualquer ponto do globo; empolamento de cotações; capacidade para escapar ao pagamento de impostos através da utilização de mecanismos previstos na lei e de paraísos fiscais. O primeiro ponto não é exclusivo dos ricos: qualquer pessoa com algumas poupanças pode hoje investir no sector metalomecânico chinês ou no sector hortícola da Arábia Saudita (não façam isso). Mas para tal é necessário dinheiro e os ricos têm-no logo à partida em maior quantidade. Dinheiro gera dinheiro, etc., e as diferenças acentuam-se. Para mais, os ricos não têm apenas transferido o dinheiro mas também as unidades produtivas das suas empresas. Isto permite-lhes maximizar os lucros mas leva a que as condições no seu próprio país se degradem: para além do aumento do desemprego causado pela deslocalização das unidades, há a considerar o impacto nos fornecedores (desemprego se também procederam à deslocalização, desemprego e eventual falência se não procederam) e ainda as dificuldades acrescidas para empresas mais pequenas do mesmo sector de actividade, que antes conseguiam concorrer apesar dos problemas de escala mas agora ficam com um diferencial de preço demasiado elevado. Resultado: os ricos ficam mais ricos (caramba, desconfio que este vai ser o meu texto mais à esquerda de sempre), os restantes também não. O que fazer? Deveremos limitar a circulação de bens e capitais, prejudicando os cidadãos dos países emergentes (a que também podemos chamar países competitivos) e aceitando pagar preços mais altos pelos produtos que consumimos? Como fazê-lo sem desencadear retaliações? Como fazê-lo sem prejudicar a competitividade das nossas empresas no mercado global? («Nossas» significa alemãs, francesas e – mas só por causa da Inditex – espanholas.) Temos a certeza de que, no final do processo, ficaremos mais ricos (nós, não os ricos)? Estas são as perguntas-chave da globalização e ainda ninguém lhes respondeu de forma satisfatória. Mas é muito provável que um dia destes, numa caixa de comentários de um blogue qualquer, alguém o faça.

 

Adiante. O que raio quero dizer com «empolamento de cotações»? Simples: como também tem sido abundantemente referido, os mercados de capitais lidam hoje com montantes muito superiores aos bens físicos que é suposto representarem. Isto ficou evidente aquando da crise do subprime, despoletada precisamente porque os bancos haviam sobreavaliado as propriedades que garantiam os empréstimos concedidos. Ora a riqueza dos estupidamente ricos é avaliada muito mais pela cotação dos títulos que detêm do que pelos bens físicos que possuem ou pelos salários que auferem, por simpáticos (ou obscenos, à escolha consoante o estado de espírito ou a filiação partidária) que uns e outros sejam. Isto é o contrário do que sucede com um cidadão da classe média que, podendo ter uma pequena carteira de títulos, tem essencialmente bens físicos (um apartamento, um carro, uma mão-cheia de electrodomésticos) e rendimentos do trabalho. Já os muito pobres, nem bens físicos possuem. Ou seja: em grande medida, a riqueza dos muito ricos é virtual. (Repare-se como Joe Berardo anda desesperado por dinheiro.) Com isto não pretendo despertar nos infelizes que tiveram o azar de começar a ler este texto (sim, você, e você também – esse penteado é novo, não é?) sentimentos de comiseração pelos muito ricos. Eles não precisam e nós temos alternativas mais rentáveis onde os aplicar. A questão é outra. Aproximar os valores expressos em cotações e balancetes dos valores reais (sendo que em muitos casos o valor real é muito discutível; pense-se em obras de arte ou mesmo na cotação do ouro) faria diminuir a fortuna dos ricos mas teria muito pouco impacto no rendimento disponível dos restantes. Dois exemplos: a implementação de mecanismos de regulação fortes, que exigissem a todas as instituições financeiras rácios (de capitais próprios, de cobertura de créditos concedidos por depósitos conquistados) mais elevados, obrigaria à injecção de capital por parte dos accionistas e levaria os lucros a descerem mas não transferiria dinheiro para os cidadãos mais pobres; a proibição de práticas como o naked short selling (em que se vendem títulos que ainda não se possuem, na esperança de que a cotação desça e se possam depois comprar mais baratos, lucrando a diferença*), o short selling (em que o vendedor usa títulos emprestados) e de outros derivativos financeiros igualmente polémicos, eliminaria parte da famigerada «especulação» (um quarto motivo para os ricos estarem a ficar mais ricos pode ser – um eleitor do Bloco ou do PC resmungará: «É» – a capacidade de manipular o mercado) e diminuiria os lucros dos investidores mas, again, não transferiria dinheiro para os cidadãos mais pobres. Nestes dois casos, os pontos positivos para o cidadão comum seriam outros: no primeiro, garantias acrescidas de que as suas poupanças estão seguras; no segundo, diminuição da volatilidade dos mercados e, por conseguinte, da violência dos movimentos de correcção (embora se deva reconhecer que um elevado número de operações de short selling envolvendo um determinado título também pode ter o aspecto positivo de servir como avisador de que algo não está bem com ele). Estes efeitos são suficientemente benéficos para que as medidas mereçam ser discutidas e, de resto, numa época em que se exige às pessoas que aprendam a viver com os pés assentes na terra, parece justo obrigar as instituições financeiras e os mercados a fazerem o mesmo. Mas nenhuma delas leva ao aumento de rendimento dos mais pobres, apenas à diminuição da riqueza dos mais ricos. E deve acrescentar-se que não se encontram isentas de facetas negativas. Ao retirar dinheiro, ainda que razoavelmente virtual, da economia, esta seria forçada a movimentos de correcção, agravando os que já estamos a sentir (obrigar os bancos a reservas mais elevadas implica ter ainda menos dinheiro disponível para a economia; um mercado de capitais com menos liquidez significa dificuldades acrescidas de financiamento para as empresas; lucros mais baixos dão origem a menor receita fiscal; and so on and so on). Não há almoços grátis.

 

Chegamos finalmente (eu prometi uma reflexão curta, não foi? Bolas, ainda acabo Primeiro-Ministro) à evasão fiscal. Em muitos países ocidentais, os sistemas fiscais são demasiado complexos e permitem demasiadas excepções. Um sistema simples, com taxas mais baixas e deduções reduzidas ao mínimo, seria uma boa forma de combater o aproveitamento dos buracos deixados inadvertida ou propositadamente na lei. Em teoria, mais impostos cobrados aos ricos (por aumento da matéria colectável, não por aumento de taxas que, convenhamos, já são ridiculamente elevadas) permitiria baixar os impostos ao cidadão comum (dream on) ou, pelo menos, garantir contas públicas mais equilibradas (durante cerca de três semanas), o que possibilitaria manter transferências sociais actualmente em risco. Aumentar a matéria colectável parece assim uma via adequada para conseguir diminuir o tal fosso entre ricos e pobres. Resta saber se o resultado seria significativo. Dos pináculos da minha irrelevância, apoiado nos instintos mais puros (porque sem qualquer sustentação em estudos científicos ou académicos), estou convencido de que apenas o seria com o fim dos paraísos fiscais. E isto cria-nos um problemita apenas ligeiramente menor do que o buraco das contas públicas porque só faz sentido eliminar os paraísos fiscais a nível global (e, ainda assim, restariam diferenças de taxação suficientes no mundo para que parte do capital continuasse a escapar-nos; a concorrência é tramada quando, apanhando-nos acomodados, se vira contra nós). Estando forçados a obter a concordância do mundo, mais vale arranjarmos cadeirinhas confortáveis e esperarmos bem sentados (acomodados por acomodados...). Ou então – já que este é o meu post esquerdista – organizarmos movimentos internacionais com ideias claras, em vez daqueles ajuntamentos de indignados de fim-de-semana que por aí andam.

 

Adenda 1: Se não percebeu patavina, parabéns. É a reacção certa.

 

Adenda 2: Nenhuma estatística foi maltratada durante a escrita deste texto. Até porque nenhuma foi usada.

 

*  Vejam Trading Places, de John Landis, para uma versão cómica e benigna do procedimento. E porque vale sempre a pena rever Jamie Lee Curtis, mesmo – ou será especialmente? – fazendo de prostituta.

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