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Delito de Opinião

Prisioneiros de gente bem-intencionada com quem se pode falar

Sérgio de Almeida Correia, 25.04.11

Em 25 de Abril de 1974, quando o despertador tocou, reparei que estavam todos na sala com os ouvidos colados ao velho Schaub Lorenz. Iluminado pelo candeeiro que hoje está em S. João, estranhei a concentração àquela hora da manhã, e mais perturbado fiquei quando me disseram que não haveria escola. Logo naquele dia que havia aula de Educação Física às 8.30. Nesse dia, e nos meses seguintes, percebi que o mundo mudara. O meu e o dos outros. Nunca mais voltei a Moçambique. O C.J., que deixara o seu lugar no Ministério das Corporações para ir cumprir o serviço militar, regressou de Angola. Quando apareceu lá em casa trouxe-me um Matra-Simca da Solido. Nunca mais me esqueci. O ano terminou sem que eu voltasse a ver o meu irmão. Meses volvidos foi o meu pai que desembarcou em Lisboa. E passei a conhecer mais uns quantos tios de quem até então só ouvira falar. Tirámos fotografias nos Restauradores e fomos ao miradouro da Senhora do Monte. Nesse tempo comia-se razoavelmente no snack-bar do Cinema Londres e os bifes do Paris-Orly eram imbatíveis.

Como então escreveu Marcello Duarte Mathias, no seu “Os Dias e os Anos”, nesse dia, “em 24 horas, Portugal mudou de século”.  

Se em 1974 saímos de um século XIX que se prolongara até 25 de Abril, em 25 de Abril de 2011 ainda tentamos perceber por que motivo um país que em 24 horas mudara de século, não consegue em trinta e sete anos mudar de políticos. Tirando os que morrem, os que ficam incapacitados ou que já enriqueceram, todos os outros se mantêm. Ainda ontem Mário Soares, a quem todos devemos o melhor do muito pouco que ainda temos, era citado por Marcello Rebelo de Sousa, em razão de uma entrevista a um matutino. Soares terá dito que um dos homens de quem depende o futuro próximo deste país era uma pessoa bem-intencionada, agradável, e com quem se podia falar. Não duvido. De Marcello Caetano também sempre ouvi dizer que era um homem bem-intencionado, agradável, e com quem se podia falar. E dele até ouvi dizer um dia, a um revolucionário moçambicano que passou por Santo Tirso e pela Faculdade de Direito de Lisboa e que apanhava boleias no avião de Jorge Jardim, quando ia de férias a Moçambique, que devia a Caetano o facto da PIDE o ter libertado.

Portugal é, e tem sido, uma terra de mulheres e de homens agradáveis, bem-intencionados e com quem se pode falar. E, no entanto, estamos como estamos, movendo-nos sem que consigamos sair do mesmo sítio. Conversando agradavelmente uns com os outros sem que nada de importante aconteça.

Bem sei que, melhor ou pior, e por vezes à força, lá nos fomos democratizando, descolonizando e desenvolvendo. Esgotando os “dês” da revolução do MFA sem que nos lembrássemos que havia mais letras. Como se tudo se resumisse a esses “dês” e fosse possível mudar de século e dar um sentido a essas letras sem o “a” de Abril. Esquecendo o “b” de burocracia e ignorando o “c” de camarilha. Ou pensar que alguma dessas realidades se consolidaria um dia sem o “e” de educação e o “f” de formar, únicas letras capazes de conterem o “g” de golpada no “h” de hoje, sem que para isso o “i” de inércia desse cabo do “j” com que se escreve justiça. Sim, porque sem justiça o “l” de liberdade se transforma num “l” de libertinagem, que anda paredes-meias com o “m” de malandragem e a mandriice que antecede o “n” dos narcisos que recorrem ao “o” das oligarquias para que o “p” de poder seja antes sinal de perpetuação do “q” de quadrilha. Daí que a esta se siga, rigorosamente, o “r” de rastilho, origem de todas as revoluções, e o “s” de sofrimento, cujas lágrimas escorrem por um pequeno “t” de transparência, demónio do “u” dos usurpadores e garantia do “v” de verdade. Verdade que trinta e sete anos depois acabou por não ser mais do que o “x” de um xadrez que viu as suas melhores peças desaparecerem no “z” dos ziguezagues dos três “dês”.

 Trinta e sete anos depois, ao olhar para trás, vejo-me na casa da partida. Que continua a ser a do regresso. À luz de um outro candeeiro, é verdade, mas tudo o mais permanece igual.

Pegando nos indicadores de qualidade das classes políticas, desenvolvidos por Juan Linz (1997), facilmente constatamos que aquilo que de substancial deveria ter mudado continua. A política ainda é uma carreira e não uma vocação; os dirigentes não evitam os perigos do radicalismo; a corrupção não está limitada; os dirigentes não resistem à tentação de cortejar movimentos e grupos duvidosos para conquistarem o poder e assiste-se diariamente a uma degeneração do discurso político de tal forma que se continua a fazer apelo aos sentimentos mais elementares dos eleitores.

 Victor Cunha Rêgo escreveu um dia que “divertimo-nos em vez de vivermos”, que “dilapidamos a inteligência e cortejamos a tolice” e que nos mantemos na periferia de nós próprios. Ao recordar o que ele escreveu, tanto tempo depois de termos levado apenas 24 horas a mudar de século, é imperioso concluir que continuamos na periferia de Abril.

E aí iremos permanecer até que voltemos a acordar. Quanto tempo mais isso ainda levará? Duvido que alguém saiba. Sei, contudo, que se continuarmos a viver numa época em que cada qual, como notou o José Cardoso Pires, insiste em falar para si próprio na companhia de muitos outros, poderemos levar outro século nisto.

De nada nos servirá haver gente bem-intencionada e agradável com quem se possa falar. Seremos de novo prisioneiros. Como até aqui.

Mário Soares devia saber que não há prisões agradáveis. Mesmo transitórias. E que ficar a falar com gente bem-intencionada não resolve os problemas e será sempre um castigo por não termos sabido repensar Abril a tempo e horas. Por não termos sido capazes de sair da periferia para entrarmos no âmago da revolução, percorrendo todas as letras do alfabeto. Sermos no futuro governados por gente bem-intencionada com quem se pode falar será a melhor prova do nosso falhanço. Um falhanço maior do que a liberdade que gozamos. Um regresso à prisão, mas desta vez à dos bem-intencionados com quem se pode falar.

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