Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Diário irregular

Sérgio de Almeida Correia, 12.04.11

12 de Abril de 2011

 

Quando em Outubro passei por aqui ainda não havia tanta placa a publicitar a venda de unidades industriais e de lotes. A estrada neste ponto distingue-se pouco de uma outra qualquer na China, com centenas de trabalhadores pela berma, a pé e de bicicleta, a caminho dos seus postos de trabalho, logo pela manhã. Pensei para mim quando cruzei Porto Alto. Desde que aconteceu a viagem do Presidente chinês muita coisa mudou. Em Portugal. Para os chineses que aqui labutam discutir o PEC IV ou a vinda do FEEF é irrelevante. A única coisa que sabem é que a crise chegou a Porto Alto. E que a alternativa é regressar a Chongqing ou Fukien. Ou, então, procurar um qualquer outro local, algures no mundo, talvez em África, que lhes permita continuar a sonhar em pagar a dívida ao financiador e regressar um dia ao Império do meio.

 

Ouço no rádio do carro as declarações de Passos Coelho de ontem à noite. Não evitei pensar no que Robert Michels escreveu em Turim, na longínqua Primavera de 1910: “O certo é que o exercício do poder modifica traços essenciais do carácter daquele que o exerce. Alphonse Daudet, que é um excelente conhecedor de pessoas, diz com extrema propriedade: «Bien vite, s’il s’agit de l’affreuse politique, nos qualités tournent au pire; l’enthousiasme devient hypocrisie; l’éloquence, faconde et boniment ; le scepticisme léger, escroquerie : l’amour de ce qui brille, fureur du lucre et du luxe à tout prix ; la sociabilité, le besoin de plaire se font lâcheté, faiblesse et palinodie». Sem dúvida que nessas circunstâncias o factor da personalidade reclama todos os seus direitos. Diferentes personalidades individuais reagem de maneira diversa às mesmas circunstâncias. Tal como as raparigas atravessam certas situações eróticas insidiosas, que são mais ou menos idênticas, saindo delas umas com a mesma pureza, outras como semivirgens e outras ainda caídas na desgraça, segundo o grau de excitabilidade sensual que nelas exista e o tipo de educação moral que hajam recebido, também nos dirigentes partidários, perante as inúmeras situações tentadoras que a vida do partido proporciona, se manifestam de modo muito diferenciado as qualidades de liderança, enquanto qualidades adquiridas e não imanentes. (…) logo que a social-democracia italiana efectuou a sua viragem para uma política de aproximação ao governo, (…), começaram a levantar-se por toda a parte vozes queixando-se do nível cada vez mais baixo dos dirigentes e, em especial, da entrada de muitos novos elementos que apenas pretendiam usar o partido como escada de acesso para se porem às costas do bezerro de ouro da administração pública”.    

 

O líder do PSD, Passos Coelho, iniciou a sua conquista do poder cultivando uma certa aura bonapartista e fazendo da serenidade discursiva uma arma. Ao animal feroz e inflamado opunha-se então a palavra doce e avisada de um líder aparentemente jovem e sem vícios que iria desfazer um equívoco chamado Sócrates, cujas falhas de carácter teriam sido postas em destaque nos casos mal explicados em que o seu nome aparecia. A verdade tornou-se numa arma da eloquência “passista”. Que, no entanto, era capaz de jogar no mesmo campo do seu adversário. Ora recorrendo a figuras de proa, como Miguel Relvas ou Miguel Macedo, ora fazendo uso dos múltiplos peões de brega que compõem o proletariado da sua direcção e que se especializaram na protecção ao cavaleiro por mais inapto que seja.

 

Quando, em 12 de Março pp., Passos Coelho justificou a recusa do PEC IV eu acreditei nele. Eu e muitos mais portugueses. Estavam em causa questões de princípio, de lealdade institucional. O homem era um “malandro” que enganava os portugueses. O silêncio de José Sócrates contribuiu para essa convicção quando o líder do PSD afirmou que todos tinham sido surpreendidos. Passos Coelho afirmara que “a oposição, reunida na véspera a discutir uma moção de censura no parlamento, não soube de nada” e que ele próprio apenas por um telefonema do primeiro-ministro ficara a saber da existência do PEC IV e dos compromissos assumidos em Bruxelas. Não duvidei que estivesse a falar verdade. Não podia era adivinhar que a verdade omitisse um elemento tão essencial para a compreensão dos factos, isto é, da própria verdade, como o não ter dito que fora informado do PEC IV não “apenas pelo telefone”, mas também que tinha sido recebido, nesse mesmo dia, em S. Bento, pelo primeiro-ministro. E que este o colocara, enquanto líder do maior partido da oposição, presume-se, ao corrente do que se passara em Bruxelas.

 

A falta de respeito inicial pelo estatuto do líder da oposição era, afinal, a rejeição do facto consumado. Ambas as razões podem ser válidas. Só que a tónica foi colocada na primeira. A segunda completava a falta de respeito. Afinal, as “falhas de carácter”, que Marques Mendes - tão lesto - apontou a José Sócrates, em Abril de 2007, acabam por se revelar em toda a sua plenitude no actual líder do PSD. Michels não se enganou. Passos Coelho é o melhor exemplo da metamorfose do dirigente no processo de ascensão ao poder. Sócrates já é passado. Como aqui neste espaço escrevi, há apenas dois dias, a um coelho sucede uma lebre.

 

O que agora os portugueses podem perguntar a si próprios é o que esperar de um tipo como Passos Coelho, alguém que ainda não chegou ao poder e já actua desta forma. Dir-se-á que não é virgem e que até Cavaco Silva incorreu no mesmo erro da omissão de factos. Pois é verdade. Mas quem numa questão destas, quando ainda não detém o poder executivo do Estado e precisa de conquistar os votos dos eleitores, actua já desta forma tão ínvia, imaginem o que não estará disposto a fazer quando a sua clique, devidamente orquestrada pelos “Relvas”, os “Jardins”, os “Mendes” e os “Marcos”, se vir instalada em S. Bento, contando com a passividade do Presidente da República?

 

Quem está de parabéns é Marcelo Rebelo de Sousa. Em boa hora, com a sua notável argúcia, rejeitou prefaciar o livro encomiástico e autobiográfico de um homem que de invulgar só pode apresentar a confrangedora vulgaridade do seu percurso académico e profissional. E hoje a transparente mediocridade da sua actuação e pensamento político. O convite a Fernando Nobre para encabeçar a lista de deputados por Lisboa foi mais um sinal. De um cata-vento político que se deixou instrumentalizar da forma que todos viram depois de alguém o convencer que tinha talento para a política não se estranha tal atitude. De um líder que apregoa a sua seriedade como cartão-de-visita seria legítimo esperar outros métodos. Tão pouco tempo de liderança e aí está ele em todo o seu esplendor. Quarenta e oito horas bastaram. Não admira que haja quem com toda a bazófia se prepare já para “despachar” mais um líder do PSD. Em boa verdade, PPC depois do que não disse e tem andado a fazer que diz não merece outra coisa. O País dispensava a repetição da dose. Só que, infelizmente, será esse o cenário com que todos teremos cada vez mais que contar. Nós e o FMI/FEEF.

 

Enfim, como sublinhou um autor (Garcia Clancini, 1995), assistimos a uma curiosa reversão temporal. Ao mesmo tempo que vivemos uma revolução tecnológica acelerada e dirigida para o futuro, há uma regressão social que atira a actual noção de cidadania para os séculos XVIII e XIX. E isto é tão mais grave quanto a “geração à rasca” já se devia ter apercebido disso para não ser mais um instrumento dessa regressão cultivada pelos nossos dirigentes políticos. O Congresso do PS e as declarações de Passos Coelho bastam.

 

A actual “geração à rasca” ainda tem a casa dos pais para se abrigar. Os seus filhos e netos provavelmente não terão, porque a essa sucederá uma geração ainda mais à rasca, dominada pelas poses bonapartistas dos actuais dirigentes. Um bonapartismo só de pose. Não na essência. Porque se persistirmos nos actuais modelos de participação e liderança, acabaremos todos não por sermos como o corso, mas por sermos como eles: isto é, definitivamente sonsos, medíocres, mansos e sempre à rasca.

 

Oxalá que por essa altura eu já tenha sido poupado a um destino que tem tanto de medonho quanto de merdoso. 

2 comentários

Comentar post