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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (34)

Pedro Correia, 17.04.11

 

LOST IN TRANSLATION:

TEREMOS SEMPRE TÓQUIO

 

Todas as gerações têm o seu Casablanca: um filme sobre uma insólita e desesperada história de amor. Em tempo de guerra, como o original, ou em tempo de paz – se é que podemos chamar paz a estes anos de intróito entre guerras como aqueles que vivemos. Vejo Lost in Translation – O Amor é um Lugar Estranho como uma espécie de Casablanca dos anos iniciais do século XXI – um homem e uma mulher encontram-se algures no mundo, muito longe das paisagens mais familiares, e procuram um no outro uma espécie de bússola que lhes permita navegar entre os escolhos da vida. Estão em ambientes estranhos, rodeados de idiomas incompreensíveis, parecendo náufragos em ilha deserta apesar das multidões em redor.
A mais profunda solidão, como é sabido, pode ocorrer no frenesim das grandes cidades. Lost in Translation – uma tocante e originalíssima história de amor – fala-nos disto através de duas personagens: um actor de meia-idade e uma jovem recém-licenciada, que por acaso se encontram num hotel de cinco estrelas em Tóquio. São ambos norte-americanos, ambos casados, ambos solitários. Estão ambos de passagem pela capital japonesa, que ambos visitam pela primeira vez. Ele com o enfado de quem já viu muito, ela com o deslumbramento de quem tem ainda quase tudo por ver.
Ele é Bob Harris (Bill Murray, no papel da sua vida), um actor que se encontra em Tóquio a gravar um anúncio publicitário a uma marca de uísque. “Na hora da descontracção, descontraia-se com Suntory”. Ela é Charlotte (Scarlett Johansson), formou-se em Yale, no Verão anterior, e mudou-se de Nova Iorque para Los Angeles depois de casar com um fotógrafo que acompanha bandas rock e parece pouco ou nada interessado nela.
Neste filme sobre o desenraizamento e a solidão, onde quase nada é dito e tudo se sugere, Sofia Coppola (o génio vem nos genes) intercala planos de Bob e Charlotte, nos respectivos quartos, em intermináveis noites de insónia. Ele faz zapping, revê-se num filme antigo, dobrado em japonês. Ela contempla os néons da cidade através das vidraças do Hotel Park Hyatt. Estão ambos no coração de uma das mais laboriosas metrópoles do planeta, mas ele sonha apenas com a peça de teatro que deixou de fazer para se deslocar ao Japão e ela lembra com fascínio um templo xintoísta que visitou sozinha em Tóquio. Conversam pela primeira vez no bar panorâmico do hotel, ao som de uma versão melosa de Scaraboroug Fair. É o início de uma bela amizade.

 

"Ganho dois milhões de dólares pela publicidade a um uísque quando podia estar a fazer uma peça de teatro. Mas a boa notícia é que o uísque é bom" - diz Bob.

"Tentei ser escritora, mas odeio o que escrevo. Tentei ser fotógrafa, mas as fotografias saem-me sempre medíocres" - diz Charlotte.

"Um dia saberá. Continue a escrever" - diz Bob.

Decidem mergulhar na noite da cidade. Vemo-los em Ginza, na Torre de Tóquio, na ponte de Yokohama. Confraternizam com japoneses num caraoque onde Bob canta More Than This, dos Roxy Music. "Tu sabes nada mais haver que isto."

Trocam confidências. Estabelece-se entre eles uma inconfundível cumplicidade. Charlotte vence enfim a guerra contra a insónia. Bob deposita a bela adormecida no seu quarto.

 

E há a despedida - a mais bela despedida de que me lembro no cinema, excepto (e lá volta o paralelo) a de Casablanca. Numa cena totalmente despojada de melodrama mas que nos seduz também por isso.

É uma despedida rápida, num lóbi de hotel.

Ela: "Vou ter saudades."

Ele: "Não quero ir."

Ela: "Não vá. Fique aqui comigo."

Bob levará Charlotte para sempre. Será isso que lhe sugere ao ouvido? Só podemos adivinhar pelo esboço de sorriso que se abre no rosto dela. Um cineasta mediano mostraria. Sofia Coppola oculta. Ou este não fosse também um filme tocado por uma surpreendente, fascinante, envolvente e singular atmosfera de pudor. De quantos produzidos nos nossos dias se poderá dizer o mesmo?

Alguns filmes reconciliam-nos com o cinema. Outros reconciliam-nos com a vida. Mais raros ainda são os que nos reconciliam simultaneamente com a vida e o cinema enquanto o tempo passa. Como este filme, que apetece rever uma vez e outra. Graças a Lost in Translation, seremos sempre felizes em Tóquio. Quem disse que jamais se deve voltar a um lugar onde já se foi feliz?

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O Amor é um Lugar Estranho (Lost in Translation, 2003). Realizadora: Sofia Coppola. Principais intérpretes: Bill Murray, Scarlett Johansson, Giovanni Ribisi, Anna Faris, Fumihiro Hayashi.

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