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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (28)

Pedro Correia, 04.02.11

  

JANELA INDISCRETA:

TODOS SOMOS VOYEURS

 

Este é um filme sobre a incurável curiosidade do ser humano. Um filme em que o conceito de espaço impera sobre o conceito de tempo.

É um filme narrado de um ponto de vista subjectivo, em que a visão do espectador coincide quase sempre com a do protagonista. Um filme com unidade espacial, unidade temporal e unidade de acção: tudo se desenrola precisamente no mesmo décor, sem flashbacks, sem acontecimentos paralelos. Sabemos daquelas personagens que estão à nossa frente exactamente o mesmo que sabe o protagonista, L. B. Jeffries – soberba criação de James Stewart, no auge da sua longa carreira.

O que temos aqui? Uma larga janela que dá para um vulgar pátio de traseiras nova-iorquino. E o olhar treinado de Jeffries, repórter fotográfico de uma das principais revistas norte-americanas, calejado em cenários de guerra. Um homem habituado a fazer da mala de viagem a sua casa e a comer "coisas para as quais até temos nojo de olhar quando estão vivas."

Não podia haver maior contraste entre o intrépido fotógrafo sem fronteiras e a sofisticada cronista mundana Lisa Fremont, com quem mantém um namoro intermitente. Ela está apaixonada por ele e sonha com o casamento. Ele, já há muito casado com a profissão, é um inimigo declarado e antecipado da rotina conjugal. O casamento, para ele, nada mais é do que "chegar a casa num dia quente e ouvir o barulho da máquina de lavar", como confidencia à enfermeira Stella – aqui numa grande interpretação de Thelma Ritter, uma das mais fabulosas "secundárias" de sempre em Hollywood.

"Tornámo-nos numa raça de mirones", sentencia Stella ao perceber como Jeffries, há sete semanas com uma perna imobilizada em gesso, está cada vez mais interessado em espiolhar a vizinhança. A escultora que gosta de tomar banhos de sol, a bailarina com uma intensa vida social, os jovens recém-casados que não abandonam o quarto, a solteirona viciada em álcool, o compositor que sofreu certamente um enorme desgosto, reflectido nas pautas de música. Em fundo, escuta-se a canção To see you is to love you. Nada aqui sucede por acaso.

E há ainda aquele misterioso vendedor ambulante de jóias, casado com uma mulher inválida. O que se esconde detrás daqueles estores misteriosamente cerrados numa noite tão quente em Greenwich Village? Terá ele cometido um homicídio? Jeffries, cada vez mais envolvido na vida dos outros, cada vez mais esquecido da sua, recorre ao binóculo e até a uma potente câmara fotográfica dotada de tele-objectiva – esse "buraco de fechadura portátil", como lhe chama a desdenhosa Stella.

O prodígio de Alfred Hitchcock nesta sua obra-prima – que a miopia da Academia de Hollywood deixou à margem das nomeações para o Óscar – é transformar quase toda a acção física em mera acção visual num dos filmes mais "invisíveis" de que há memória (suprema ironia: por questões relacionadas com direitos autorais, Rear Window permaneceu 30 anos longe dos olhares dos espectadores). Somos o que vemos – e aqui somos todos voyeurs. Jeffries e nós, cada um dos espectadores. E também Stella e Lisa e até Tom Doyle, o céptico inspector de polícia. "Fazemos muitas coisas em privado que não expomos em público", diz ao amigo fotógrafo, com aquela filosofia prática de quem não se deixa iludir pelas aparências.

O mais espantoso, neste filme, é que Hitchcock inverte com sucesso o axioma: aqui nenhuma aparência ilude e apenas o que vemos se torna verdadeiro. A propósito, é espantosa a evolução visual de Lisa Fremont (Grace Kelly), essa mulher "demasiado perfeita", na definição inicial do seu indeciso namorado. Quando ela surge no ecrã, vão decorridos 16 minutos de filme, estamos perante uma das mais deslumbrantes aparições alguma vez ocorridas na Sétima Arte: só vendo se acredita. Mas o guarda-roupa dela e até o penteado vão perdendo requinte e aproximando-se do modelo de mulher aventureira e sem glamour que Jeffries idealiza como seu duplo e como seu par. É uma armadilha destinada a caçar o calejado caçador, como bem nos apercebemos na cena final, carregada de ironia hitchcockiana na sua óbvia metáfora da conjugalidade: ele adormecido, mais imóvel que nunca; ela com o glamour recuperado, trocando a leitura da revista dele pela revista dela.

Cerra-se a cortina, acentua-se o efeito de claustrofobia. Só não escutamos – mas bem podíamos – o ruído de uma máquina de lavar.

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Janela Indiscreta (Rear Window, 1954). Realizador: Alfred Hitchcock. Principais intérpretes: James Stewart, Grace Kelly, Wendell Corey, Thelma Ritter, Raymond Burr.

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