Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Dois poetas para lembrar sempre

Pedro Correia, 12.12.10

 
Dois poetas. Dois espíritos superiores que andam escandalosamente esquecidos. Morreram há 32 anos, com um intervalo de poucas semanas: Jorge de Sena (1919-78) e Ruy Belo (1933-78). Inconformistas, ambos exilados – um no exterior, outro no interior. Sem grupos ou capelinhas, habituados a arremeter contra ventos e marés. E acima de tudo dois excelentes poetas – do melhor que tivemos, não apenas no século XX mas em toda a história da literatura portuguesa.
Partiram ambos demasiado cedo, ainda com muitos livros por escrever. Primeiro Sena, um dos mais corajosos resistentes à ditadura salazarista, com a qual não transigiu em circunstância alguma – ele que era um adversário acérrimo de toda a espécie de ditadura. Exilado no Brasil, por decisão própria, viria igualmente a abandonar este país quando a ditadura militar se instalou em Brasília, acabando por fixar-se em Santa Barbara, Califórnia, onde ainda hoje residem a sua viúva, Mécia de Sena, e vários dos seus nove filhos.
 
Jorge de Sena distinguiu-se como tradutor (de Malraux e Hemingway, por exemplo), crítico literário, antologiador, ficcionista e dramaturgo. Mas sobretudo como admirável poeta – uma das mais originais vozes portuguesas das últimas décadas. Dele é, por exemplo, este fabuloso Camões dirige-se aos seus contemporâneos: “Podereis roubar-me tudo: / as ideias, as palavras, as imagens, / e também as metáforas, os temas, os motivos, / os símbolos, e a primazia / nas dores sofridas de uma língua nova, / no entendimento de outros, na coragem / de combater, julgar, de penetrar / em recessos de amor para que sois castrados. / E podereis depois não me citar, / suprimir-me, ignorar-me, aclamar até / outros ladrões mais felizes. / Não importa nada: que o castigo / será terrível. Não só quando / vossos netos não souberem já quem sois / terão de me saber melhor ainda / do que fingis que não sabeis, / como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais, / reverterá para o meu nome. E mesmo será meu, / tido por meu, contado como meu, / até mesmo aquele pouco e miserável / que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito. / Nada tereis, mas nada: nem os ossos, / que um vosso esqueleto há-de ser buscado, / para passar por meu. E para outros ladrões, / iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.” Ou a célebre Carta a meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya: “Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes / aquele instante que não viveram, aquele objecto / que não fruíram, aquele gesto / de amor, que fariam ‘amanhã’. / E, por isso, o mesmo mundo que criemos / nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa / que não é nossa, que nos é cedida / para a guardarmos respeitosamente / em memória do sangue que nos corre nas veias, / da nossa carne que foi outra, do amor que / outros não amaram porque lho roubaram.”

 

Ruy Belo foi igualmente um dos mais singulares nomes da poesia portuguesa. Ribatejano de Rio Maior, celebrou em verso o campo e a cidade, o seu tempo e todos os tempos, o passado e o futuro, o corpo e a alma, o rincão natal e o universo sem fronteiras. Profundamente cristão, tal como Sena, mas descrente das várias igrejas, sem jamais deixar de confiar no Homem. É também o poeta da luz solar – em permanente rebelião contra o tempo crepuscular em que viveu. E foi afinal num Verão bem quente que o seu coração desistiu de bater, quando ainda havia tanto a esperar do seu talento.
Ruy Belo tem inúmeros poemas de uma qualidade ímpar – quase todos os de Homem de Palavra(s), por exemplo. Mas o de que mais gosto é do longo poema A Margem da Alegria, dedicado aos amores de Pedro e Inês – o mais belo e trágico romance de sempre em Portugal: “O mistério dos mares tenebrosos tem ali silêncios rasos / navegantes de pé entre o dossel do céu e a cama da maré / jazem serenos hoje nessa lousa onde o tempo apenas pousa / e só com a minha lâmina de aço língua de toledo os ameaço / no túmulo deitada inês parece a própria placidez / ela que em vida ouvindo alguém chamar / julgava respirar esse cheiro envolvente português / dos laranjais e jamais a nave donde nunca mais / havia de sair não já para criança inaugurar / o dia a dia o vasto espaço onde cada folha / dos plátanos e até canas e oliveiras / valem humildemente mais do que a melhor palavra minha.”
 
Dois grandes autores desaparecidos há três décadas. Façamos tudo para que a obra de ambos não sucumba à pior das mortes literárias: a do esquecimento premeditado. Fartos de figuras menores andamos todos nós.

 

10 comentários

Comentar post