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Delito de Opinião

Fotografias tiradas por aí (390)

José António Abreu, 31.12.17

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Portugal, 2017. Ou uma última homenagem ao «ano saboroso» de um António Costa certamente mais habituado a locais sprinklados e aos topos de gama que os colegas do partido, bem como os respectivos familiares e amigos, usam para chegar aos empregos que os dois últimos anos lhes providenciaram.

 

(Se fizerem questão de saber: perto de Oliveira do Hospital, há uma semana.)

Três álbuns de música clássica lançados em 2017

José António Abreu, 31.12.17

 

Antonio Pappano, Saint-Saëns: Carnaval dos Animais & Sinfonia Nº 3 "Órgão".

Edição Warner Classics.

 

Duas das mais famosas obras de Camille Saint-Saëns foram compostas quase em simultâneo e dificilmente poderiam ser mais diferentes. Toda a gente conhece pelo menos excertos de O Carnaval dos Animais, um divertimento para dois pianos e ensemble de nove músicos, que inclui segmentos dedicados, entre outros, ao leão, ao elefante, ao burro, aos «animais de orelhas compridas» (coelhos, lebres), aos galináceos, aos peixes, às tartarugas e (num toque de humor gaulês) aos pianistas. Saint-Saëns compôs O Carnaval dos Animais como um exercício de descontracção durante os trabalhos da sinfonia nº 3. Temendo que prejudicasse a sua imagem de compositor «sério», determinou que a obra apenas poderia ser tornada pública após a sua morte, limitando-se a autorizar algumas sessões privadas (entre as quais uma para o amigo Franz Liszt) e a publicação do movimento "Cisne", adaptado para violoncelo e um único piano. O Carnaval veio finalmente a público em 1922 - um ano após a morte de Saint-Saëns - e depressa se tornou uma das obras mais populares do francês. 

Nesta edição, os pianos são tocados por Antonio Pappano e por Martha Argerich. O acompanhamento é providenciado por um ensemble composto a partir dos solistas de orquestra da Academia Nacional de Santa Cecília, de Roma. Da delicadeza e lirismo do «Cisne» à pomposidade do «Elefante», tudo soa perfeito. E, ainda que ela já tenha interpretado «Os Pianistas» várias vezes, é sempre uma delícia ouvir Martha Argerich fingir que está a aprender a tocar piano.

Pappano conduz a orquestra de Santa Cecília na Sinfonia Nº 3 "Órgão", um trabalho numa linha neoclássica, mas cheio de passagens delicadas e sensuais, que a orquestra delineia perfeitamente (e os técnicos da Warner captam de forma igualmente brilhante).

(Não descobri um vídeo relacionado com esta gravação. N'O Carnaval dos Animais, acompanhada por, entre outros, Gidon Kremer, Argerich pode ser vista aqui.)

 

***

 

 

Max RichterThree Worlds: Music From Woolf Works.

Edição Deutsche Grammophon.

 

A melhor música composta para servir de complemento a imagens (sejam elas ao vivo, como num bailado, ou num suporte tecnológico qualquer, como num filme) sobrevive mesmo longe destas. Para apreciar a música que Tchaikovsky compôs para O Lago dos Cisnes não precisamos de ter alguma vez visto o bailado. Para sentir a intensidade d'A Cavalgada das Valquírias não é necessário conhecer a ópera de Wagner - ou o filme de Coppola - onde ela surge.

Na realidade, a melhor música sobrevive mesmo que não se conheçam quaisquer referências a seu respeito. Pode ouvir-se e apreciar-se a Sétima Sinfonia, de Shostakovich, sem saber que é apelidada de «Leninegrado» - e porquê. Pode ser-se fã de Tears in Heaven, de Eric Clapton, desconhecendo o acontecimento que lhe esteve na origem.

Por vezes, não saber demasiado até se revela benéfico. É hoje difícil ouvir Wagner sem sentir estar a partilhar um prazer com Hitler. Na maioria das casos, porém, conhecer as obras para as quais a música foi composta, ou os acontecimentos que a inspiraram, ou as circunstâncias que já a moldaram, permite analisar melhor a obra e constitui um factor positivo de ligação emocional. (Também salva algumas obras menores, que não levaríamos a sério se não estivessem relacionadas com, por exemplo, um filme que nos marcou.) 

Tudo isto para referir que pouca gente conhecerá Woolf Works, um bailado de Wayne McGregor baseado em três livros de Viginia Woolf (Mrs. DallowayOrlando e The Waves), mas que isso não é necessário para apreciar a música composta para ele por Max Richter. A música de Richter é suficientemente forte para dispensar o apoio de imagens concretas ou até o conhecimento da fonte de inspiração. Mas conhecer os livros ajuda. Torna mais fácil perceber por que razão nos temas baseados em Mrs. Dalloway a música é geralmente suave mas está cheia de interrogações; por que razão nos temas inspirados por Orlando a sonoridade é mais variada, com mistura de estilos e de sonoridades (incluindo componentes electrónicas); e porque o único mas longo tema dedicado a The Waves é - perdoe-se-me a falta de imaginação - ondulante, melancólico e extremamente belo. Todo o álbum (que inclui apenas parte dos temas compostos para o bailado) é perpassado por constantes interrogações, por aquela busca incessante, feita a partir de múltiplos pontos de vista, que caracteriza a literatura de Virginia Woolf.

Devo ainda mencionar os segmentos de abertura de cada bloco. Em grande medida, neles procura-se adicionar contexto para os que (ainda) não leram Woolf, e reforçar a ligação à música dos que já leram. Mas também servem para deixar claro qual o tema principal que guiou Richter - e, décadas antes, Woolf: os mecanismos da memória, as suas imperfeições, o modo como molda a história. O primeiro segmento é composto por um excerto da única gravação conhecida da voz de Woolf, no qual ela refere que as palavras da língua inglesa estão cheias de ecos e de memórias do passado, e que isso dificulta imenso a tarefa do escritor. No segundo, a actriz Sarah Sutcliffe lê um excerto de Orlando, igualmente focado nas questões da memória (Memory is the seamstress, and a capricious one at that...). Finalmente, no terceiro, a actriz Gillian Anderson (e como a sua voz inconfundível causa um instante de surpresa inteiramente adequado) lê a nota de suicídio que Woolf deixou ao marido.

Depois de Philip Glass já ter composto uma excelente banda sonora para o filme The Hours, Richter prova o que qualquer leitor de Woolf consegue sentir: a prosa dela é altamente musical.

 

***

 

 

Barbara HanniganCrazy Girl Crazy.

Edição Alpha.

 

Barbara Hannigan deixa-me sem palavras (e, todavia, desconfio que vou escrever umas quantas). Como soprano, tornou-se o rosto e a voz da incomparável Lulu, de Alban Berg (admitamos que com alguma concorrência por parte de Patricia Petibon), deslumbrou nesse objecto estranho que é Le Grand Macabre, de Ligeti, conseguiu que escrevessem para ela o principal papel feminino de uma das melhores óperas das últimas décadas, fez paródias com pasta dentífrica que incluem lamentos sobre «no more all-night boning», e - convém referi-lo, já que estamos a 31 de Dezembro - ainda se dedicou a festas de passagem de ano. Como comunicadora, revela uma excelente capacidade de expressão e um delicioso sentido de humor. Como mulher, é atraente (vale o que vale, mas não vale a pena esconder que vale alguma coisa). E, desde há alguns anos, é também maestrina. Quando ela canta (postulemos que o termo admite fronteiras amplas) e simultaneamente dirige a orquestra, até Ligeti fica irresistível (bom, quase).

Há cerca de 4 meses, Hannigan lançou Crazy Girl Crazy, um álbum no mínimo peculiar. Inica-se com Sequenza III, de Luciano Beria, que basicamente consiste em nove minutos de exercícios vocais (calma, não se vão já embora). Seguem-se temas de Lulu, quase todos instrumentais (Lulu, a personagem, tem apenas uma canção - nem se lhe poderá chamar ária - em toda a ópera, e é curta). No final, surgem os treze minutos mais sublimes da música de 2017 (não, não exagero e também não admito opiniões contrárias, excepto se provenientes de canídeos ou de outros animais com capacidade para ouvir frequências inaudíveis para os humanos). Dificilmente se classificará Gershwin entre os compositores mais experimentalistas - ou mais pessimistas -, mas ele admirava profundamente a música de Berg, que encontrou em Viena em 1928 e que até lhe autografou uma fotografia. Com a ajuda do compositor e orquestrador Bill Elliot, Hannigan dedica-se a extrair da música do norte-americano um nível de inquietude que acaba por transformá-la numa sequência adequada a tudo o que a precede, sem lhe eliminar o carácter festivo que permite fechar o álbum em tom de alegria e optimismo. E, no fundo, me permite a mim fazer o mesmo em relação a 2017.

(Nota destinada a pessoas simultaneamente observadoras e picuinhas: a versão apresentada no vídeo acima é cerca de um minuto mais curta do que a versão inserida no álbum; a do álbum é ainda melhor.)

O comentário da semana

Pedro Correia, 31.12.17

«O socialista Luís Patrão diz que isto é uma "tentativa de simplificação legislativa para evitar pequenos focos de discordância interpretativa". Tem piada: nunca vi estes mesmos políticos particularmente interessados em "simplificações legislativas para evitar pequenos focos de discordância interpretativa" quando é o comum contribuinte que está em questão. Pelo contrário, parece que nesse caso quanto mais confusão legislativa - melhor.»

 

Do nosso leitor João Sousa. A propósito deste meu texto.

Obviamente, vai vetar

Pedro Correia, 30.12.17

O Presidente da República  vetará as escandalosas alterações à legislação que regula o financiamento dos partidos político. Nem poderia ser de outra maneira, face aos clamores de indignação surgidos dos mais diversos sectores da sociedade portuguesa.

O meu aplauso a Marcelo Rebelo de Sousa por este veto, aliás aqui prenunciado: nunca duvidei que seria a atitude certa. Em nome da mais elementar higiene pública.

Chegar ao fim

Sérgio de Almeida Correia, 30.12.17

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Chegar ao fim.

Pode parecer duro, talvez mesmo cruel, assim dito desta forma seca, áspera, que por vezes soa tão violenta. Nunca me foi tão fácil dizê-lo. E ao mesmo tempo é tudo tão profundamente tormentoso.

Será difícil esquecer um ano sentido entre o pico do Evereste e a escuridão da fossa de Mindanau, em que de tudo um pouco e até o nada que aconteceu conseguiu ser tão perturbante.

O sucesso académico, e os termos de que o seu reconhecimento veio acompanhado na pátria que ficou para trás, mas também nas muitas que me foram acolhendo fora de portas, culminando anos de intenso trabalho, distribuindo o tempo — essa miragem que nos foge segundo a segundo e a que por vezes, estupidamente, damos a liberdade de se escoar ainda mais depressa — entre conferências, seminários, palestras, gabinetes, escritórios, bibliotecas, livros e revistas sem fim, jornais, até rádio e televisão, imagine-se, eu, aspirando a que os olhos não se cansassem, temendo que a luz lhes faltasse e as letras começassem a turvar-lhes o caminho, quando por momentos pensava em Borges e no meu Padrinho, cegos para a eternidade com tanto para fazerem, alternando o seu brilho, o dos meus, que me dizem ser intenso, com a mais profunda e desconsolada tristeza, assistindo impotente à partida daqueles a quem ficarei para sempre ligado por laços indestrutíveis de camaradagem, tornados eternos por essa mesma partida precipitada, comprometidos por amizades sem cedências, recebendo o exemplo de um combate incapaz de vacilar, imune a constrangimentos e dificuldades. Tão lento quanto feroz, mas capaz de fazer estremecer as portas do Céu.

E depois ver, e olhar com aqueles mesmos olhos, a tristeza dos outros olhos que me são mais queridos, sentindo-os envelhecer longe, desprotegidos do conforto a que sempre se habituaram, ali esperando, também eles, que os dias fossem mais curtos, menos penosos, ansiando desesperadamente pelo escoar do tempo enclausurado entre as paredes daquele mundo distante e rude que se tornou o deles, tornando mais amargos os seus próprios queixumes, as recriminações contra um ramerrão estranhamente atribulado, sem que percebessem o porquê tão intenso de tal destino, lavrando impropérios, frases soltas de revolta contra o tempo que eu queria controlar.

Como se alguma vez fosse possível amenizar a dor, aquela que é de facto sentida em cada hora, encurtando-lhe o tempo, penteando-a, escanhoando-a, enfiando-lhe uns rolos, mudando-lhe os pijamas e os lençóis, as fraldas, as camisolas coçadas que passaram a ser as de todos os dias em que o tempo parou.

E depois eu voltava a sair para o mundo, para o outro, em que o tempo é contado, tão longe deles e ali mesmo ao lado, comigo sentado na cadeira colocada ao seu lado, ou na borda da cama, enquanto via o seu esforço para comer, para que a couve não lhes caísse na mesa ou no tabuleiro, para que a manga já mergulhada no molho não se sujasse.

E depois não poder partilhar as minhas pequenas vitórias lá de fora, do outro mundo, do mundo de onde eu vinha e para onde iria logo a seguir, tornando ainda mais curto o seu tempo e mais prolongada e distante a minha ausência, dor sempre embarcada e a cheirar a combustíveis, tantos que se tornou indiferente saber se entre tantas estradas, portos e aeroportos se tratava de gasolina, de gasóleo ou de querosene, e onde a única certeza era a de que jamais teria a felicidade de me cruzar com eles, de poder abraçá-los, assim na rua, no meio das outras pessoas, numa estação, numa sala de embarque, no quiosque dos jornais, dar-lhes um beijo terno, como se fossemos ainda as pessoas normais que éramos antes desse sacana do tempo resolver tomar conta de nós e deles, castrando-nos outros sonhos e maiores prazeres definitivamente irreconciliados por força dele. E das chagas que os trouxeram até aqui.

Chegar ao fim sentindo que tudo o que foi feito ainda está por concluir, que o meu tempo se está a apartar cada vez mais do deles e que ambos e tornaram gelatinosos, fugidios, como aquele resto de pudim que se lhes escapa da colher, ali, às voltas pelo prato, até soltarem novo impropério, exaustos, abandonando essa luta sem sentido até que alguém lhes dê uma ajuda.

Ah, como estão longes e distantes aqueles dias em que caminhávamos junto ao mar, ouvíamos Rachmaninov e Brel, tomávamos juntos um copo de vinho, falávamos de futebol, de livros e de política. Para a Mãe o futebol ainda faz sentido, mas agora só se lembra do Eusébio e dos remates dele naquele jogo que nunca soube qual foi porque já se esqueceu. Aquele memória já não sabe de que era é, nem como se sobe o som do telemóvel.

Chegar ao fim tornou-se numa preocupação. Agora tudo se tornou em chegar ao fim. Para todos nós. Chegar ao fim do livro, chegar ao fim do jogo, chegar ao fim da corrida, chegar ao fim da rua, chegar ao fim da fila do supermercado, da farmácia, do estacionamento, das consultas, da urgência hospitalar, das finanças, para depois se chegar ao fim do dia, ao fim da noite, ao fim do mês, até se chegar ao fim do ano.

Esperando sempre que esse fim não chegue ao fim sem eu chegar. Sem que eu possa ver então o tempo partir ficando eu no mesmo lugar. Como tantas vezes fiquei este ano, sentindo a injustiça que há nisto tudo. No tempo deste tempo, que não tarda vai outra vez chegar ao fim. Para que amanhã as nuvens voltem a passar, o chão a sorrir, a correr, a saltar, a nadar, como se o tempo não existisse, como se não houvesse horas nem relógios, que ainda há alguns que também dão o tempo. O nosso e o deles. Vingativos, cobardes, acintosos, com a amargura estampada nos ponteiros, no tiquetaque rançoso do despertador, nos números encarnados do digital da mesinha, piscando quando a outra tipa vem e desata a bater com o tubo do aspirador em tudo o que é sítio com medo que o tempo não lhe chegue para se despachar mais cedo sem escaqueirar a mobília e as suas mossas, mais as tomadas, antes de acabar com as franjas dos velhos tapetes de um qualquer desses buracos terminados em “ão” onde o tempo parou no tempo e nas mãos de quem os teceu.

E é assim que se chega ao fim. Sem ruído. Tão perto e aqui tão longe. Onde ele está sempre presente, sem tom nas cores dos dias, perdido no cinzento dos séculos, para sempre imerso no tempo, num tempo que eu ainda espero, no meu íntimo, que não seja o último.

E que eu veja, e os veja, mesmo assim, quando ainda me podem abraçar, dar um beijo, um abraço na lonjura deste tempo que não me perdoa. Nem eu a ele. Até chegar ao fim. Porque ninguém merece um tempo assim.

 

Bom Ano Novo para todos vós. Que sejam felizes. Com saúde.

 

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A alegria de saber que há locais onde a austeridade acabou mesmo

José António Abreu, 30.12.17

Câmara de Lisboa. Avenças em gabinetes do PS chegam a aumentar 80%.

 

Lisboa tem excepção que permite mais 96 assessores e ‘plafond’ de 20 milhões.

O Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL) permite aos grandes municípios (com mais de 100 mil habitantes) terem 22 membros nos gabinetes dos vereadores e do presidente da câmara. Dada a sua dimensão, Lisboa é objecto de uma excepção que é aprovada, mandato após mandato, pelo executivo municipal. De acordo com a proposta de Fernando Medina aprovada em reunião de câmara no início deste mandato — apenas com a abstenção dos dois vereadores do PCP — os vereadores, os respectivos grupos políticos e o presidente podem contratar 96 pessoas para os gabinetes: 71 assessores e 25 funcionários de apoio administrativo. A estes 96 juntam-se os 22 já garantidos. Contas finais: 118 assessores/adjuntos.

 

Um dado já estabelecido, mas que a notícia confirma - ide lê-la, ide -, é o cuidado tocante, nesta época de insensibilidade e egoísmo, que os socialistas revelam no apoio à famiglia. Perdão, à família.

2017 e o futuro radioso

José António Abreu, 30.12.17

 

«Sabes qual é o primeiro objectivo de qualquer consultor?»

«Reduzir custos ao cliente?»

«Não sejas ingénuo.»

«Então qual é?»

«Descobrir formas de prolongar o contrato de consultoria.»

 

Ora portanto: em 2017, funcionários públicos e pensionistas continuaram a recuperar rendimentos, mas nas escolas a comida surgiu crua ou com lagartas, nas penitenciárias os almoços e jantares foram diminuindo de tamanho, nos hospitais agravaram-se as condições de salubridade e aumentaram as listas de espera para cirurgias urgentes, nas vilas e aldeias a Protecção Civil não conseguiu evitar a morte de mais de uma centena de cidadãos, nos quartéis os militares foram incapazes de evitar roubos de armas, nas instituições de solidariedade social cometeram-se desvios de fundos públicos sem que, não obstante a existência de denúncias, a tutela se desse ao incómodo de averiguar, e nos bancos continuou a meter-se dinheiro público, ainda que num caso - como os socialistas gostam - por portas travessas.

Também em 2017, categorias variadas de funcionários públicos nada incomodados com as irrelevâncias mencionadas no parágrafo anterior lembraram-se de começar a lutar com o governo por «direitos» (leia-se: dinheiro) que até 2016 o governo parecia achar não apenas justos, mas benéficos para a economia (agora parece só achá-los justos). Patrocinada pelo PCP através da CGTP, a luta deverá continuar em 2018 e ser bastante divertida, mas potencialmente muito cara, para quem está de fora.

Do lado das coisas que não aconteceram em 2017 conta-se, por tradição nacional e para não perturbar Catarinas e Jerónimos, a implementação de reformas que todos (enfim, todos os que ideologicamente se situam fora da extrema esquerda) sabem ser indispensáveis, e que todos (ver parêntesis anterior) também sabem que seriam menos dolorosas de realizar em época de crescimento económico, ainda que esse crescimento ronde os 2%, muito abaixo dos cerca de 3% da vizinha Espanha ou dos valores que seriam de esperar em qualquer economia minimamente equilibrada saindo de uma fase de correcção das contas públicas durante a qual o PIB contraiu 8% (convém ter presente que, neste caso, 2 não chega a uma quarta parte de 8, pelo facto de o denominador ter ficado mais baixo*). E, todavia, as exportações de bens e de serviços mostram-se excelentes, não obstante os recentes e tristes problemas com o pernil de porco destinado a um dos países-modelo do Bloco e do PCP, facto que só pode deixar um indivíduo a ponderar o que diabo travará Portugal. O clima, talvez. O excesso de eucaliptos. A venda de salgadinhos nos hospitais.

Enfim, continuemos, que é forçoso reconhecer um inegável mérito à Geringonça: em 2017, tornou abundantemente claro que o primeiro objectivo do Estado é alimentar o próprio Estado. (A anedota do início perde alguma piada ao chegar aqui, não perde?)

 

E o futuro? Quais as perspectivas para 2018, 2019, 2020, e por aí fora? Numa palavra, sublimes, que Centeno lidera o Eurogrupo, a Alemanha está com governação suspensa e até as agências de notação vêm subindo os ratings da república para níveis de 2010. Há uma nuvenzita negra, uma manchinha no radar, mas poucos a referem, até para evitarem imediatas acusações de «pessimismo» e - pior ainda - de «passismo» (um termo que 2018 poderá não conseguir apagar do léxico nacional). Eu - garanto - vou fazê-lo exclusivamente por motivos de sistematização: o que acontecerá a um país com o nível da dívida pública portuguesa (em queda apenas ligeira) e o nível de encargos do Estado português (entre já assumidos e previsíveis, com tendência para subida), quando a economia mundial abrandar, especialmente se abrandar muito (se houver um crash bolsista, por exemplo)? O que fará um governo com as contas públicas novamente desequilibradas e dificuldades de financiamento externo? Na verdade, é facílimo antever o primeiro passo: subirá ainda mais os impostos, estrangulando ainda mais empresas e cidadãos, e lançando novamente milhares de funcionários do sector privado no desemprego. Mas, porque fazê-lo nem sempre aumenta as receitas e invariavelmente aumenta as despesas do Estado, é capaz de não chegar. Com ou sem programa de assistência internacional, pode ser necessário cortar pensões, bem como salários no sector público, de forma ainda mais brutal do que na última ocasião (a vitória de Pirro que as «devoluções» rápidas e a garantia de «progressões» constituiriam para professores, enfermeiros e demais funcionários do Estado), ou até avançar para despedimentos no sector público (o horror, o horror). Ou então, chegados a esse improvável cenário, talvez possamos ser verdadeiramente criativos e salvaguardar os direitos dos trabalhadores ligados ao Estado libertando os presos, obrigando os alunos a trazerem refeições de casa, equipando os militares com fisgas e encerrando os hospitais.

Vai-se a ver e nessa altura, ainda que com milhentas ressalvas de temporalidade, o Tribunal Constitucional aceitará tudo. E o Bloco de Esquerda, enquanto parceiro de uma coligação governamental maioritária, imitará os parceiros do Syriza e, como ainda agora fez nas alterações à lei do financiamento partidário, aceitará o contrário do que jura defender.

Mas de momento corre tudo bem e, porque outra coisa não merecemos, assim continuará. Um excelente ano de 2018 para todos.

 

* Perdoe-se-me a nota presunçosa, mas a matemática não é o ponto forte nacional, como a generalidade das estatísticas e três bancarrotas em cerca de 30 anos confirmam.

Blogue da semana

Inês Pedrosa, 30.12.17

Acontecimentos é o título do excelentíssimo blogue que o poeta e filósofo brasileiro Antonio Cicero mantém há dez anos. Nele encontramos sobretudo poesia (a dele e a de muitos outros grandes poetas) e reflexões sobre poesia: trata-se de um blogue dedicado ao que realmente acontece para lá da superfície, do acontecimento contrário à trovoada de irrelevâncias em que tantas vezes nos deixamos submergir. Vale a pena procurar os textos das crónicas que escreveu para a Folha de São Paulo (por exemplo, nas entradas "barbárie", "civilização" e "direitos humanos"), desmontando, com lucidez, saber e arte, a mitologia contemporânea do relativismo cultural. Encontram-se também textos e entrevistas de outros autores (como o seu muito amigo Caetano Veloso) sobre estes temas. Antonio Cicero é, além de um poeta de altíssima qualidade, um dos filósofos mais estimulantes e argutos do nosso tempo. Como bónus, o poeta a dizer um dos seus mais belos poemas, aqui .      

Frases de 2017 (50)

Pedro Correia, 29.12.17

«Não vim incomodar o Presidente com trabalho: vim desejar-lhe naturalmente as melhoras, inteirar-me do seu estado de saúde, falar-lhe como amigo e oferecer-lhe um bom livro de espionagem, que é sempre muito bom para recuperar e descansar nestes períodos pós-operatórios.»

António Costa, falando hoje aos jornalistas após visitar o Presidente da República em convalescença no Hospital Curry Cabral

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