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Delito de Opinião

Reflexão do dia

Pedro Correia, 31.08.17

«O triste caso dos cadernos de exercícios da Porto Editora é o reflexo das leviandades, superficialidades e de um frenesim histérico em que estamos integrados, sendo de gargalhada que tenha sido um humorista a reconduzir os factos à sua significância. Grave é que não se atalhem outras realidades lesivas da dignidade humana, da igualdade de género e das injustiças que persistem. Grave é que, 43 anos depois de 25 de Abril, com a Esquerda no poder, em registo bafiento, o governo intervenha em tons de azul para recomendar a retirada de publicações. Grave é que, nesta como noutras matérias, as designadas referências morais da Liberdade, dos Serviços Públicos e de outras expressões comunitárias se remetam a um ensurdecedor silêncio.»

António Galamba, no i

Do jornalismo ao jornalixo

Pedro Correia, 31.08.17

As chamadas "redes sociais" são hoje a maior rede de amplificação de mentiras no quotidiano português. Qualquer aldrabice ali posta a circular ganha eco imediato, com opiniões definitivas cavadas em trincheiras, sem ninguém cuidar da verdade dos factos.

Nos últimos dias isto ficou bem evidente na absurda polémica dos caderninhos de apontamentos pré-escolares com capas a azul e cor-de-rosa, com centenas de pessoas a pronunciar-se sobre algo que nunca tinham visto nem faziam a menor ideia do que era. Bastaram uns bitaites no Twitter para logo a bola de neve engrossar. Da "rede social" a estória saltou para todos os media e destes para um obscuro organismo oficial pomposamente designado Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género, e daqui para o gabinete do ministro adjunto do primeiro-ministro, que fez um inédito apelo público à retirada desses cadernos do mercado - onde se encontravam, sem qualquer polémica, desde Julho de 2016!

 

Tudo isto em apenas 24 horas e sem que se estabelecesse uma versão contraditória: estava em curso um linchamento colectivo e ululante, passatempo favorito das "redes". Ninguém fez caso do que disse  Susana Baptista, responsável pelas publicações infanto-juvenis da Porto Editora, ninguém ouviu a autora, Catarina Águas - licenciada em Educação de Infância na Escola Superior de Educação de Lisboa -, ou as ilustradoras dos tais cadernos, Ana Valente e Rita Duque. Todas do "genero" feminino, todas profissionais respeitáveis, todas ignoradas. Como se estivesse em causa uma empresa de vão de escada e não a maior editora portuguesa, com uma reputação alicerçada em sete décadas nos domínios da pedagogia e da didáctica.

Foi preciso um humorista - neste caso Ricardo Araújo Pereira - repor a verdade dos factos para a polémica se esvaziar quase tão depressa como tinha começado. Sem carteira profissional de jornalista, ele fez o que qualquer bom jornalista deveria ter feito: apurar o que realmente se passava, sem emprenhar de ouvido.

Este episódio envergonha os jornalistas portugueses. E ajuda a explicar por que motivo todos os títulos da imprensa continuam a cair a pique, como demonstram os calamitosos números referentes ao primeiro semestre de 2017 agora divulgados pela Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação.

 

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Anteontem, embora com menos destaque, aconteceu uma história semelhante, também iniciada nas redes sociais. Sobre os supostos maus-tratos dados a um galo numa remota aldeia do concelho de Seia: o bicho, garantiam os arautos da pós-verdade refastelados nos seus sofás lisboetas sem nunca terem posto os pés na referida povoação, seria morto à paulada, com requintes de sadismo. Com a ave "agonizando lentamente fruto da malvadez".

Foi quanto bastou para que o PAN salivasse de indignação. A coisa meteu comunicado oficial do partido animalista, denúncias ao Ministério Público e à Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária. De imediato os órgãos de informação reproduziram tudo isto - uma vez mais, sem apurarem os factos, como mandaria a deontologia profissional.

Parecia um filme de terror. Com o ligeiro problema de ser mentira. Como a Câmara Municipal de Seia, presidida pelo socialista Carlos Filipe Camelo, se encarregou de esclarecer, desfazendo o boato. Entretanto, lamentavelmente, apenas o Jornal de Notícias tinha cumprido o dever jornalístico, estabelecendo o contraditório ao ouvir as pessoas daquela aldeia que desmentiram a atoarda sem rodeios numa peça escrita pela jornalista Madalena Ferreira (infelizmente não disponível em versão digital no momento em que escrevo estas linhas).

 

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Acontece que as redes estão-se nas tintas para a verdade. Essa "turba inorgânica", como bem lhe chama Francisco Mendes da Silva, quer indignar-se o tempo todo contra não importa o quê. Tal como os viciados em drogas duras, os junkies das caixas de comentários dos jornais - os mesmos que espalham qualquer atoarda no Twitter e no Facebook - fazem prova de vida berrando por escrito sobre assuntos acerca dos quais nada percebem, nada querem perceber e têm raiva a quem perceba.

Isto explica que as putativas agressões ao tal galo só existente na delirante imaginação do PAN tenham dado azo à habitual javardice histérica, com dezenas de pessoas disparando contra um alvo afinal inexistente.

 

Uma vez sem exemplo, aqui transcrevo algumas dessas opiniões, colhidas ao longo de 24 horas na caixa de comentários da edição electrónica do JN, para se avaliar bem o nível intelectual desta gente:

«Haja vergonha! Haja respeito por seres que sentem como nós!»

«Quais são as origens dessa barbaridade? Religião ou vudu?»

«Voltamos à idade da pedra mas da pior forma. É que nessa época matava-se para comer, agora mata-se por diversão.»

«É uma tradição de merda e já devia ter acabado.»

«Outra tradição para atrasados mentais... já não basta os doentes de Barrancos...»

«Que façam tradição com os seus familiares. Não têm que o fazer a seres inofensivos que estão ali por obrigação.»

«E que tal serem eles e a sua "tradição de caca" a levarem paulada?»

«Estes divertimentos de merda à custa do sofrimento dos animais pôem-me doente. Que tal substituir o galo pela besta (humana) lá da aldeia?»

«Sugiro para as pessoas que são a favor deste tipo de tradições seguirem a minha nova tradição: amarrar um de vocês e bater-lhes com um barrote até morrerem.»

«Podem substituir o galo pelo António Costa?»

 

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No meio deste vendaval de imbecilidades, uma  leitora ainda tentou repor a verdade: «Se há uma coisa que abomino é a falta de profissionalismo jornalístico e a política suja que se pratica no nosso pais. Para aqueles que gostam de opinar sem o devido conhecimento, informo que morte do galo é na verdade a morte do ovo: não andam à palauda ao galo mas ao ovo .»

Como era de calcular, ninguém fez caso: os "factos alternativos" são muito mais sedutores do que a verdade nua e crua.

Assim vamos andando: dispara-se primeiro e reflecte-se depois. Com o genuíno jornalismo praticamente em vias de extinção, entretanto absorvido pelas "redes". Cada vez mais travestido de jornalixo: vociferante, acéfalo, populista, irresponsável e mentiroso.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 30.08.17

 

«Este caso [da polémica em torno de dois cadernos de exercícios pré-escolares da Porto Editora] encerra várias histórias exemplares sobre o Portugal contemporâneo. Desde logo, a história do jornalismo-militante, que por vezes é mais militante do que jornalismo, e a da crise da imprensa (como é que em vários jornais e televisões, que se querem instituições sólidas e confiáveis, passou a mesma manipulação da realidade, sem o mínimo crivo hierárquico editorial sobre a relevância do assunto e a veracidade dos factos?). Mas também a história de um poder político que censura livros "polémicos" e a de um capitalismo tendencialmente receoso do Estado. Se Portugal fosse uma economia de mercado mais saudável, a Porto Editora tinha mandado o ministro Cabrita dar uma volta, de mão dada com a sua estratosférica prepotência. No fundo, esta é a história do estado das nossas elites. A democracia depende tanto da cacofonia das massas como da mediação dessa cacofonia. O que vimos foi a demissão total das elites que deviam fazer essa mediação, que claudicaram ao primeiro rugir da turba inorgânica das "redes sociais".»

Francisco Mendes da Silva, no Jornal de Negócios

Grande galo

Pedro Correia, 30.08.17

Os novos censores andam aí (1)

Pedro Correia, 30.08.17

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O Cinema Orpheum, em Memphis, anunciou o cancelamento em 2018 da exibição anual do filme E Tudo o Vento Levou, galardoado com oito Óscares em 1940, interrompendo uma tradição ali existente há 34 anos, Verão após Verão. Motivo invocado: os protestos de "largos segmentos" da população daquela cidade do sul dos EUA, que nas redes sociais acusam o filme de perpetuar estereótipos raciais e contemporizar com a escravatura.

Convidado: ARMANDO PALAVRAS

Pedro Correia, 30.08.17

 

Esboço de uma literatura russa

  

Aos que sofreram nos GULAG soviéticos

as agruras sofridas pelos judeus nos campos de extermínio nazis

e pelos chineses nos campos do deserto de Góbi.

 

 

Enquanto no Ocidente, durante todo o século XIX, autores como Baudelaire e Marx, entre outros, aproveitaram o processo de modernização em desenvolvimento para o usarem como fonte de energia e material criativo, nas áreas geográficas fora do Ocidente a modernização era inexistente. Foi essa a situação da Rússia durante todo o século XIX. A sua economia estagnava, e em alguns casos até regredia. Trotski reconhece-o na sua História da Revolução Russa, no I Volume: “O traço essencial e o mais constante da história da Rússia é a lentidão em que o país se desenvolveu, apresentando como consequência uma economia atrasada, uma estrutura social primitiva e baixo nível cultural."

Este atraso em relação ao Ocidente desempenhou um papel central na politica e na cultura russas, da década de 1820 ao período soviético. Cerca de cem anos. A Rússia, em relação ao Ocidente, no século XIX, foi um arquétipo do Terceiro Mundo no século XX.

 

No inicio do século XX, o país com maior dimensão populacional em quase todos os outros padrões surgia em último. Em 1913 tinha o rendimento per capita mais baixo da Europa (exceptuando o Império Otomano), e a esperança de vida (30 anos) colocava-o século e meio atrás da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos da América. Tchékhov di-lo sarcasticamente na sua peça O Cerejal.

Contudo, esta era do subdesenvolvimento russo produziu, no espaço de duas gerações, uma das maiores literaturas do mundo. E, curiosamente, foi São Petersburgo, a capital imperial, a mais clara expressão de modernidade no solo russo do século XIX. Que iniciou uma tradição literária brilhante com características próprias. Assumida com Puchkine (no seu Cavaleiro de Bronze) e se estendeu a Gogol, Chernyshevski, Dostoievski e Bieli. Nela surge como personagem principal o “homem comum”, cujo destino é sempre o de vitima. Mas uma vitima cada vez mais audaciosa no século XIX, fruto das várias revoluções. Uma vitima que encarna a vida real de alguns dos autores. Dostoievswki, por exemplo, teve a vida moldada por dois acontecimentos. O seu pai morreu quando ele era ainda jovem, provavelmente assassinado por um dos seus servidores. Mais tarde, o autor de Recordações da Casa dos Mortos esteve prestes a ser executado por traição. Foi cruelmente conduzido ao cadafalso e deixado de olhos vendados à beira da morte, antes de ser informado que a pena fora comutada.

E como Dostoievski nenhum poeta, romancista ou dramaturgo russo terá trabalhado em condições normais de liberdade intelectual. Muito menos em condições favoráveis a essa liberdade.

 

A literatura russa é intima, escrita para o leitor russo. Mas mesmo o leitor exterior a esse território com a dimensão de metade da lua consegue perceber o tormento de Pushkin, o desespero de Gogol, a alma dilacerada de Dostoievski na Sibéria, a luta impetuosa de Tolstoi contra a censura e o desalento do extenso rol de assassinados (ou desaparecidos) incrustados nas façanhas literárias russas do século que nos precedeu. A estes podemos juntar Turguénev, Tchecov, Andréev ou Nikolai Leskov, que se tornaram clássicos para as gerações posteriores.

Mas o homem comum torna a aparecer-nos no contexto soviético, após uma revolução que juntamente com os seus companheiros venceu; numa nova ordem onde teoricamente goza de todos os direitos de que necessita. Uma ilusão que pagou cara.

O mítico John Reed, no seu imortal 10 Dias que abalaram o Mundo, descreve-nos em rigor os primeiros dez dias da tomada do poder bolchevique. Só a História da Revolução Russa de Trotski se lhe assemelha, suplantando-o em muitos pontos.

 

As políticas genocidas na Rússia Soviética dos anos 1932-1933 e 1937-1949 estão hoje devidamente documentadas e estudadas. Já Dostoievski, em Demónios, nos transporta às origens do terrorismo moderno. Porque o conceito de “terror em massa” é fulcral em Lenine, fórmula que surge a partir da revolução de 1905. Volta a surgir em força na Primavera e durante o Verão de 1918, estando ainda presente em Abril de 1921. E largamente apoiada por intelectuais como Gorki, sobretudo no que diz respeito à massa de camponeses. Em 1930-31, foram deportados cerca de dois milhões de camponeses.

De repente, o terror de 1793 dos “homens do barrete frígio” é institucionalizado no dia 5 de Setembro de 1918 pelo decreto “sobre o terror vermelho”. De facto, os meses que se seguem caracterizam-se por um clima de violência estatal absolutamente novo. São 15.000 as vítimas do Outono de 1918. Ou seja, foram executados, em dois meses, três vezes mais do que o número total de executados no século anterior pelo terror czarista!

 

Nicolas Werth destaca o escabroso editorial do jornal da tcheka de Kiev: “Que o sangue jorre a rodos!”.

Caracterizado pela obsessão da depuração, o terror de massas leninista cria a via de limpeza social que Estaline empreende a partir de 1929, ano da “Grande Viragem” e dos “Amanhãs que cantam!”.

É neste contexto histórico que surge esta literatura, produzida por homens e mulheres que sofreram na pele o terror soviético, cujas personagens das narrativas são, na dimensão humana, os mesmos “deuses” e heróis evocados por Homero, Sófocles, Ésquilo e Euripides. [1]

 

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Ivan Chmeliov (1873-1950) nasceu e foi criado em Moscovo, onde se formou em Direito. Em 1918 instalou-se na Crimeia. Foram anos de fome, medo e humilhação. Em 1920, o filho único do escritor, ex-oficial do Exército Branco, foi preso no hospital e fuzilado.

Emigrou em 1922 para França. A sua obra-prima, onde conta a história da Crimeia do pós-guerra, um testemunho vivo da pavorosa concretização da “grande experiência de transformação” politica e social da Rússia levada a cabo pelo partido bolchevique, foi saudada por Thomas Mann.

Em Março de 1922, 400 mil pessoas passavam fome; 75 mil morreram. Até ao Verão de 1923, 100 mil pessoas morreram de fome.

É sobre esta tragédia que Chmeliov se debruça em O Sol dos Mortos.

  

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Evgueni Zamiatine (1884-1937), escritor por vocação e engenheiro naval por profissão, é um dos primeiros vultos a tratar o homem comum da época soviética nos seus contos. No Ocidente tornou-se famoso com Nós (1924), a pioneira distopia que iria influenciar textos de género como 1984 de Geroge Orwell. Onde denuncia as maluqueiras bolcheviques de 1917, ao intervirem na vida privada, acabando com a instituição família, transformando o espaço doméstico em espaço colectivo onde viviam várias famílias, com dormitórios colectivos e salas próprias para o sexo!

Em 1931 endereça uma corajosa missiva crítica a Estaline.

Os contos de Ziamatine são “um lampejo do que a literatura pós-revolucionária poderia ter sido, se a ditadura não tivesse eliminado totalmente a independência, a ousadia e o individualismo” (Mirra Ginsburg). Nas suas narrativas, impelido pela total liberdade humana de criar, converteu-o num cidadão inconveniente em dois regimes despóticos. O czarismo condenou-o por um ano de exílio; o comunismo baniu-o para sempre.

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Ossip Mandelstam (1891-1938) foi um dos grandes poetas modernos. Escritor profundamente tradicional (da tradição de Petersburgo), na sua novela de 1928, O Selo Egípcio, trata o homem comum como até aqui não havia sido tratado porque nos aparece num contexto soviético, com o seu drama e angústia pós-revolucionários. No final da história Mandelstam faz referência a Moscovo e ao hotel Selecto, através do capitão Kirzzanowski. Moscovo tornara-se o quartel-general de uma nova elite soviética protegida (e chefiada) por uma terrível polícia secreta que actuava a partir da prisão Lubianka, onde o poeta, seis anos depois, seria interrogado e detido.

Dois anos depois da publicação d’O Selo Egípcio, o poeta, juntamente com Nadejada, sua esposa, regressa a Leninegrado, mas os esbirros do partido que estavam ao comando da Sociedade de Escritores e controlavam os empregos e a habitação, expulsaram-nos.

Os Mandelstam regressam a Moscovo. E em 1933, no meio da campanha estalinista pela colectivização das terras, onde perecem mais de quatro milhões de vidas camponesas, e a um passo da Grande Depuração que levaria à morte outras tantas (ou mais), o poeta compôs o poema n.º 286 sobre Estaline.

Embora Mandelstam o não tenha escrito, leu-o em voz alta diversas vezes em reuniões à porta fechada. Um dos que o ouviram denunciou-o à policia secreta. Numa noite de Maio de 1934 foram buscá-lo. Após terríveis sofrimentos físicos e mentais, quatro anos depois morreu num campo de passagem perto de Vladivostoque.

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Isaac Babel (1894-1940), influenciado por Gogol (e Maupassant), nasceu na cidade portuária de Odessa que pertencia ao império russo. Era filho de um vendedor de roupas usadas e de uma judia moldava. O seu tio fora morto num pogrom.

Borges, referindo-se a Babel, dizia que o “clima habitual” da sua vida “seria uma catástrofe”.

As suas principais histórias foram incluídas, mais tarde, em Exército de Cavalaria. Escreveu ainda Contos de Odessa, narrativas de inspiração autobiográfica sobre a sua infância no gueto de Moldavanka, antes e após a revolução.

Em 1930 testemunha, na Ucrânia, a brutalidade e as mortes causadas pela colectivização forçada da agricultura. No Congresso da União de Escritores Soviéticos, em 1934, Babel é já um autor marginalizado pelo realismo socialista. O regime silenciou-o. Em 1935, a sua peça Maria viu a estreia cancelada em Moscovo pela polícia política. Em 1939 foi preso e interrogado sob tortura na prisão do KGB em Moscovo. Segundo a versão oficial teria morrido numa prisão do Gulag em Março de 1941. Os seus manuscritos foram confiscados e destruídos.

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Vassili Grossman (1905-1964) nasceu na cidade de Berdítchev, a “capital judia” da Ucrânia, em 1905. Filho de judeus, o pai era engenheiro e a mãe professora. Embora tenha estudado engenharia, Vassili acabou por se tornar jornalista e escritor.

Como correspondente do jornal militar russo Krasnaya Zvezda, cobriu as batalhas de Moscovo, Estalinegrado, Kursk e Berlim. Será um dos primeiros repórteres a testemunhar a libertação dos campos de extermínio de Treblinka e Majdanek. E o seu artigo “O Inferno de Treblinka” servirá de prova nos julgamentos de Nuremberga.

Em 1961, os agentes do KGB assaltam-lhe a casa levando-lhe todas as anotações que possuía para Vida e Destino, um volume extraordinário, mas de leitura complexa. Em 1974 um dos originais que sobreviveram é microfilmado pelo poeta Semion Lípkin e através do físico nuclear Andrei Sákarov e do humorista Vladimir Voinovich, esse manuscrito sai do país para ser editado em vários países em 1980. Em 1988 é publicado na Rússia de Gorbatchov.

Em Vida e Destino, Grossman, além de denunciar as atrocidades nazis, manifesta um profundo desencantamento com as lideranças soviéticas desde a revolução de 1917. Anna Semiónovna foi uma das vítimas dos pogrom e Evguénia Nikoláevna, perseguida devido às posições políticas do seu marido, Víktor, assistiu à progressão do medo e do sistema vil da denúncia em nome da “confiança do partido”. E procurou guiar-se e “agir segundo a sua consciência”, o melhor que foi dado ao ser humano.

O terror leninista/estalinista, assinalado anteriormente, foi confirmado em obras literárias como Tudo Passa, de Grossman. Um dos seus personagens, um activista convicto, a dado passo diz: “Escorraçámo-los como a um bando de gansos.”

No fim da vida escreve o seu último volume. Uma espécie de reportagem na Arménia. Com o qual tornou a ser molestado por abordar o genocídio arménio. 

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Varlam Chalamov (1907-1982) nasceu em Vologda. Filho de um padre ortodoxo, viveu os seus primeiros 22 anos em liberdade e os quase 20 seguintes como prisioneiro político em Kolimá, uma imensa mina de ouro. A trassa era o caminho que os prisioneiros percorriam para alcançar os diferentes campos dispersos pela taiga. São desertos gelados atravessados pelo rio Kolimá. Dois milhões de quilómetros quadrados a leste do Lena, para os quais foram deportados cerca de dois milhões de prisioneiros entre 1932 e 1957. Tanto Anne Applebaum em Gulag, como Evguenia Guinzbourg, em Le Ciel de La Kolyma, o testemunham.

A este lugar, Varlam chama “o desembarcadouro do inferno” [2]. Num dos seus contos descreve minuciosamente técnicas para conduzir um carrinho de mão, de forma a economizar esforço. Quando os pelotões fuzilavam sem descanso, diz-nos: “Durante meses, de dia como de noite, por ocasião das chamadas da manhã e da noite, foram lidas inúmeras condenações à morte. Com um frio de cinquenta graus negativos, os prisioneiros músicos – de delito comum – tocavam uma marcha antes e depois da leitura de cada ordem. As tochas fumegantes não conseguiam atravessar as trevas e concentravam centenas de olhares nas folhas de papel fino cobertas de gelo em que estavam inscritas as horríveis mensagens.” Nas caves realizavam-se fuzilamentos; espaços onde 50 pessoas ocupavam o lugar de 20 com direito a 200 gramas de pão por dia. 

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Alexandr Soljenitsine (1918-2008) nasceu em Kislovodsk. A grande denúncia sobre o terror soviético surgiu numa obra sua - Arquipélago Gulag. Os gulag [3] eram campos de concentração e de trabalho forçado na antiga União Soviética.

Um Dia na Vida de Ivan Denisovich foi a sua primeira novela. E foi o primeiro testemunho publicado na antiga URSS por um dos presos políticos a mando de Estaline. O Ocidente soube tarde da tragédia do Gulag. E para isso contribuíram intelectuais como Bertolt Brecht, que há muito sabia dessa tragédia mas continuava a venerar o sanguinário Estaline.

Ivan Denisovich é um prisioneiro politico do antigo regime soviético que revela as atrocidades (psicológicas e físicas, nas quais se inclui a repressão) dos campos de trabalho forçado, o Gulag, que o regime de Estaline (e Lenine) aproveitaria do tempo dos czares. É, aliás, bem provável que a sua origem esteja na prisão da ilha de Sacalina, à qual Tchécov dedicou um livro sobre o estudo que aí fizera.

Os detalhes são assombrosos. Denisovich acorda adoentado, é castigado por dormir alguns minutos a mais, passa o dia trabalhando num frio de rachar e tem de se indispor para conseguir uma ração miserável. O cenário é desolador. Os prisioneiros enfrentam o inferno branco (neve e inverno) do Cazaquistão com sapatos onde não cabem os pés, luvas que rasgam a qualquer movimento, camas esqueléticas e cobertores ratados. Embora cercados de um frio imenso, só são dispensados do trabalho escravo quando o termómetro marca 41º negativos!

O relato sobre Ivan, é o relato da experiência sofrida pelo próprio Soljenitsine, à época com 43 anos. Não imaginou os factos (o relato não é ficção ou narrativa romanceada), não ouviu testemunhos. Ele próprio, mais tarde Nobel da Literatura, sofreu na pele a fúria do regime e dos seus caciques; da corrupção do sistema. Só por milagre a detenção lhe não custou a vida. Comandante de um pelotão de artilharia no Exército Vermelho durante a II Guerra Mundial, foi condecorado duas vezes por bravura em combate. No fim da campanha, foi detido por criticar Estaline numa missiva enviada a um amigo.

Já como prémio Nobel e apenas com um livro publicado (Um Dia na Vida de Ivan Denisovich), passa à escrita os apontamentos que iriam dar origem a O Arquipélago Gulag, publicado em 1973 no Ocidente. A obra de Soljenitsine é uma narrativa sobre factos presenciados pelo autor, prisioneiro durante onze anos, em Kolima, um dos campos do arquipélago, e pelas cartas e relatos de 237 pessoas.

 

Quantos desapareceram nos Gulag? Pelo menos seis vezes mais do que os que foram chacinados no holocausto nazi.
Anne Applebaum, em Gulag, trata dos números e de muito mais. Uma fonte recomendável.                                    

 

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[1] Porque se trata de um esboço, neste escrito, por receio de lhes não dar a dignidade que merecem, não se reproduz reflexão sobre muitos autores russos, dessa época, que mereciam uma referência tão elevada como aqueles que nos mereceram essa reflexão: Sinyavsky que cumpriu pena em vários campos de trabalho forçado entre 1966 e 1977; Pasternak, Anna Akhmatova, Marina Tsvetaeva, Joseph Brodsky, Jaan Kross (Estónia) e Chukovskaya, que na sua novela trata de Bilibin e Veksler.

Também não se faz reflexão sobre ficções como O Meteorologista, de Rolin, ou de narrativas como Rumo à Liberdade, do polaco Slavomir Rawicz.

 

[2] José Milhazes diz-nos sobre o assunto:” Ao vaguear na Net deparei com a publicação de um trecho de um livro traduzido por mim em 1990 "Contos de Kolima” num blog chamado "Teor Crítico".

Escrita por Varlam Chalamov, ela exerceu em mim uma grande importância, tendo contribuído fortemente para a revisão de algumas das minhas ideias políticas. É depois de obras como estas, de relatos directos, pessoais, que se conclui que entre os campos de concentração nazis e o Gulag poucas diferenças existiam. Uns diziam matar pela "limpeza da raça", outros pela "classe social"... Descubra a diferença!”. (http://darussia.blogspot.pt/2013/11/contos-de-kolima-excerto.html).

 

[3] GULAG - acrónimo para Glavnoe Upravlenie Lagerei, ou "Administração Central dos Campos", palavra que por fim passou a descrever todo o sistema soviético de punição e trabalhos forçados para prisioneiros criminais e políticos, crianças e mulheres - espalhavam-se por todo o país, da gélida Sibéria às inóspitas regiões da Ásia Central, passando pelas florestas dos Urais e os subúrbios de Moscovo. Cerca de 18 milhões de pessoas passaram por esse sistema de trabalho escravo, tema do livro Gulag, de Anne Applebaum.

Os maiores gulags ficavam em regiões geográficas quase inacessíveis e com condições climáticas extremas. A combinação de isolamento, frio intenso, trabalho pesado, alimentação mínima e condições sanitárias quase inexistentes elevavam as taxas de mortalidade entre os presos. Para se proteger da violência, alguns grupos de presos criaram códigos e leis internas que deram origem aos Vory v Zakone – a máfia russa. A quantidade de campos foi reduzida a partir de 1953, logo após a morte de Estaline. Porém, os campos de trabalho forçado para presos políticos duraram até os anos 90.

 

 

Armando Palavras

(blogue TEMPO CAMINHADO)

Porque não há-de ser assim?

Helena Sacadura Cabral, 29.08.17

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Às vezes gosto de me expressar através das palavras dos outros. Acontece quando, pela sua simplicidade, vão directas ao meu coração e não à minha razão, embora esta as não descure.
As questões levantadas pelo quadro que reproduzo acima sintetizam tanto e tão bem o que penso sobre aquilo que vivemos que decidi partilhá-las convosco. 
É uma pagela que tenho à minha frente, na mesa onde trabalho. De vez em quando sabe-me bem olhar para ela! 

Jorge Gomes ou o optimismo.

Luís Menezes Leitão, 29.08.17

Nem Voltaire, que se lembrou de colocar o seu Candide em Lisboa aquando do terramoto de 1755, se resolvesse escrever sobre a tragédia dos incêndios de 2017, conseguiria ilustrar o seu romance com alguém tão optimista como Jorge Gomes. De facto a personagem Pangloss não lhe chega aos calcanhares. Que há a dizer perante alguém que refere que comeu belíssimas refeições no teatro de operações? Reconhecer que de facto, nos dizeres do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa já conseguiu contagiar todo o governo com o seu optimismo crónico e às vezes um pouco irritante. Não se preocupam se a tragédia alastra. Pelo menos come-se bem.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 29.08.17

«Há uns livrinhos para crianças do pré-primário que - imagine-se! - têm cores diferentes consoante o sexo dos destinatários. Dizem-nos, agora, que o cor-de-rosa para meninas e o azul para meninos é coisa reaccionária. Vai daí, uma Comissão para a Igualdade de Género (é assim que se diz, não é?), depois de instruída por um ministro sagaz deste Governo, "sugeriu" a erradicação de tal discriminação. (...) Assim, o assunto - entre incêndios e outras desgraças - virou matéria de Estado, com uma solene admoestação à incauta editora, na esteira do tique interventivo de que alguns jamais se libertam. (...) Pus-me a pensar quando chegará o tempo certo de um auto-de-fé para os livros da Anita ou da Sofia, por óbvia discriminação. Ou, então, porque não substituir na Branca de Neve um dos sete anões que, coitados, trabalhavam como mineiros, por uma anã mineira? E, que diabo, no Ali Babá e os 40 ladrões nem uma quota simbólica de ladras? E a Heidi de saias, não pode ser!»

António Bagão Félix, no Público

Esse irresistível sentimento colectivo...

Teresa Ribeiro, 29.08.17

O caso dos livros da Porto Editora chamou mais uma vez a atenção para o fenómeno do pensamento de manada, que as redes sociais vieram instituir quase como pensamento único e a que desgraçadamente nem os profissionais da Comunicação Social escapam. 

Sempre que acontece uma história assim pergunto-me por que é que pessoas reconhecidamente inteligentes se deixam enredar tão facilmente, precipitando-se a replicar as opiniões que circulam. O mesmo acontece na política, onde encontro tantos que apesar de não terem interesses ou carreiras a defender nesse sector, não hesitam em apoiar acriticamente os líderes partidários da sua simpatia. 

E a resposta que encontro é sempre a mesma: Porque o pensamento independente priva-as de tudo o que é bom no pensamento "clubístico". Dessa componente lúdica não querem prescindir, nem mesmo em nome das causas mais nobres. 

Isto está perigoso.

Luís Menezes Leitão, 29.08.17

A notícia de que a Coreia do Norte acaba de lançar um míssil (felizmente não armado) sobre o Japão é a confirmação do agravamento da tensão internacional na região, motivado pela estupidez de Trump. Qualquer pessoa inteligente percebe que o que não tem remédio remediado está e a Coreia do Norte há muito que constitui um Estado pária, completamente à margem do actual sistema internacional, que por isso pode ser ignorado, mas que é um autêntico suicídio tentar combater.

 

Contra a Coreia do Norte não servem condenações internacionais, e muito menos por resolução das Nações Unidas. A Coreia do Norte é o único país do mundo que travou com sucesso uma guerra contra as Nações Unidas, da qual não saiu derrotada. Por isso pode dar-se ao luxo de ignorar tudo o que na ONU se diga, limitando-se a qualificar as sua resoluções como uma nova declaração de guerra. E por isso as ameaças dos EUA são absolutamente irrelevantes para Pyongyang, de nada servindo os disparates que Trump tem vindo a dizer. Ou melhor, podem servir para lançar um mar de chamas sobre Seul, Tóquio e até Guam.

 

Steve Bannon, o estratega principal da eleição de Trump viu isso muito bem quando afirmou o seguinte: "Até que alguém resolva a parte da equação que mostra que 10 milhões de pessoas morrerão em Seul nos primeiros 30 minutos pelo uso de armas convencionais, eu não sei do que estão a falar, não há solução militar aqui. Eles apanharam-nos". Logo a seguir a estas declarações Trump demitiu Steve Bannon. Mais uma vez se demonstra, como no Frankenstein, que é muito fácil a criatura rebelar-se contra o criador. O pior é que isso pode provocar uma catástrofes de dimensões imprevistas. O mundo já tem um louco na Coreia da Norte. Só lhe faltava um monstro de Frankenstein na Casa Branca.

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