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Delito de Opinião

Jeanne Moreau 'in excelsis'

Pedro Correia, 31.07.17

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Há caras que não nos enganam. Ela tinha uma dessas caras. Os olhos magoados, a boca sensual, o lábio inferior ligeiramente descaído, dando-lhe um ar de amuo permanente. Essa face tão expressiva fez a aura desta actriz - uma das maiores estrelas de sempre do cinema francês. Dela emanava uma «sexualidade enigmática e brilhante», na feliz definição de Camille Paglia.

Vimo-la nesse fabuloso noir de Louis Malle que se intitulou Ascenseur pour l'Échafaud (1957), ao som de Miles Davis. Ou, de novo dirigida por Malle, imortalizada em Os Amantes (1958). Ou, no mais insólito dos triângulos amorosos, em Jules e Jim (1962), de Truffaut. Ou na excelente versão do Diário de uma Criada de Quarto, de Buñuel (1964). Ou, ao lado de Brigitte Bardot, em Viva Maria, ainda de Malle (1965). E em tantos outros filmes que lhe fizeram perdurar o inigualável rosto com que todas as câmaras pareciam fazer amor.

Acaba de rumar à eternidade: mesmo sem a sua presença física entre nós, ela é daquelas que sempre povoarão os sonhos cinéfilos, fazendo da arte das imagens em movimento uma singular liturgia dos sentidos.

Para o ano é que vai ser

Rui Rocha, 31.07.17

Convidado: SAMUEL DE PAIVA PIRES

Pedro Correia, 31.07.17

 

Da incapacidade crónica para debater civilizadamente

 

Há uns dias, André Freire escreveu um artigo intitulado “Sete razões para não votar Fernando Medina nas autárquicas”. O artigo tece várias críticas à gestão camarária da capital, dando particular relevância às questões das obras públicas e da mobilidade, não se enredando em querelas ideológicas ou partidárias. Ainda assim, numa época em que as redes sociais potenciam o efeito de câmara de eco e contribuem para o entrincheiramento de partes em contenda ideológica e/ou partidária, que não se coíbem de fazer concursos de ortodoxia, passar certificados de pureza ou impureza ideológica e protagonizar purgas dos impuros que apresentem qualquer desvio ao que deva ser a linha orientadora da respectiva tribo política, não deixaram de surgir críticas ao artigo, em especial no mural do autor no Facebook, assentes em argumentos como os seguintes: “isto não é de todo uma postura de esquerda e fundamentada que nos tem feito crer como sendo a sua orientação”; “Esta gente de esquerda deviam (sic) ter cuidado no que escreve. Parece que estou a ouvir a cristas (sic)”; “O Sr. André Freire a fazer a política da direita! O povo não dorme e lhe irá dar a resposta em 1 Outubro de 2017...”

 

Dir-me-ão que, vindas de perfeitos desconhecidos, e atendendo aos níveis reduzidos de cultura democrática e pluralista e de preparação para o debate político civilizado do cidadão médio (se dúvidas houvesse a este respeito, as caixas de comentários dos blogs e jornais e as redes sociais esclareceram-nas), estas críticas não assumem especial relevo. Afinal, é pública e notória a hemiplegia moral, nas palavras de Ortega y Gasset, de que muitos sofrem, tornando-os incapazes de manter um debate civilizado com aqueles que perfilham outros pontos de vista (o mesmo Ortega y Gasset adoptava o perspectivismo, ou seja, a lógica tópica aristotélica, revitalizada no século XX pelo jurista alemão Theodor Viehweg, segundo a qual os diferentes pontos de vista sobre uma mesma realidade são complementares e as diferenças e peculiaridades, ao invés de obstaculizarem a procura da verdade, permitem captar certas porções da realidade). Contudo, às tantas surge uma conhecida historiadora, Irene Pimentel, que demole o artigo de André Freire não com argumentos, mas com esta prosa: “detesto todo o artigo, discordo dele, e nem percebo o interesse...”. Instada por André Freire a produzir argumentos, seguiu-se uma discussão em que Irene Pimentel passou o certificado de impureza, “Agora não me venha dizer que é de esquerda. Aliás fartei-me...”, ao que o autor do artigo replicou “já cá faltava essa da proprietária exclusiva e que passa certidões a dizer quem é e não é de esquerda!... passe bem minha senhora!”, e a historiadora treplicou “idiota mal criado. Sim, sou de esquerda. E deixe de me convidar para apresentar livros seus, por favor... Não se esqueça que eu tenho memória. Mas que mal educado, arrogante. Não passe bem. Vou eliminá-lo.”

 

Portanto, alicerçada na sua preferência ideológica ou partidária, Irene Pimentel sentiu-se no direito de purgar André Freire da sua tribo política, de o insultar e de revelar publicamente um convite privado que este lhe terá dirigido. Estamos a falar de alguém que, por defeito, deveria ter a capacidade de debater com elevação e não cair no insulto fácil. Infelizmente, parece-me que John Gray está certo ao considerar que a acepção oakeshottiana da política, que a entende como uma conversação, uma forma de acomodação de diferentes perspectivas, foi quase totalmente perdida. De facto, aquilo que Oakeshott classificava como política racionalista, a política do livro ou da cartilha ideológica, impera na política contemporânea, complementada por uma forte personalização da política que leva a que as tribos imponham ortodoxias, censurem heterodoxias, escondam e desculpem os defeitos dos seus membros e exaltem os dos membros das tribos opostas, sendo capazes de criticar ou defender uma mesma decisão ou atitude consoante a pertença ideológica ou partidária de quem a toma – como diria Sir Humphrey Appleby, “Where one stands depends upon where one sits”.

 

Existirá, porventura, alguma razão para que alguns partam para a discussão no debate público ou político a partir de um pedestal de superioridade moral a que se alcandoram? Creio que não. Alguns, à esquerda, ainda acreditam na possibilidade de uma ideologia científica, que julgam ser aquela que professam; outros, à direita, crêem que o alegado fim da história de Fukuyama lhes deu razão; muitos pensam estar do lado certo da história (como se esta fosse a Força do universo Star Wars); mas a esmagadora maioria considera-se moralmente superior apenas por mera convicção individual, um viés cognitivo que o neurologista Robert Burton explora em On Being Certain.

Infelizmente, na época em que vivemos, a humildade e a honestidade intelectual parecem não assistir a indivíduos que as deveriam fomentar e que, assim, acabam por se barricar em redutos assentes em racionalismos ideológicos ou meras convicções pessoais. O mesmo é dizer que em vez de utilizarem a força da razão, recorrem à razão da força. E como escrevi há uns anos, do debate num espaço público caracterizado pela cacofonia, onde a discussão é quase sempre dominada por surdos que sofrem de hemiplegia moral, (…) aos gritos uns com os outros, não pode surgir razão alguma.

 

 

Samuel de Paiva Pires

(blogue ESTADO SENTIDO)

O comentário da semana

Pedro Correia, 30.07.17

«Dizia alguém que a mente do homem serve para esquecer.
Ora num país maravilhoso, rico, anafado, lustroso de tanta gordura, nada pior que estas mortes para estragar o espectáculo desta geringonça cada vez mais trôpega.


Tenho alguns projectos apresentados às entidades competentes para "Melhoria da resiliência da floresta", nome pomposo para a "coisa". O projecto tem um custo total de 13 mil euros, dos quais só 85% é comparticipado.
Mas nem esses 85% recebo porque não reúno as melhores condições para ser ressarcido. Porque a criação de caracóis é muuuuuuuuuito mais importante para a economia portuguesa...
O dinheiro, esse já o gastei porque não quero ver as oliveiras e os sobreiros do meu pai novamente totalmente queimados como aconteceu em 2005.
E o curioso é que fiz uma queixa por escrito à Provedoria de Justiça, por a Autoridade PRD2020 nunca ter tido o devido cuidado de me informar como andava o processo, e recebi daquela entidade uma resposta lacónica e quase a culpar-me de eu estar a tratar as terras sem a respectiva autorização.
Obviamente, levaram resposta.


Por isso em Portugal também só se morre desde que a geringonça deixe. Ninguém está autorizado a morrer assim sem mais nem menos.
Só por decreto.
Termino com uma célebre frase: "A morte de um homem é uma tragédia, a de um milhão é uma estatística".»

 

Do nosso leitor José da Xã. A propósito deste meu texto.

Ler

Pedro Correia, 30.07.17

Grande jornalismo (no sentido da extensão). Do Paulo Guinote, n' O Meu Quintal.

A questão da habitação. De Ana Santos, no Ladrões de Bicicletas.

Ladies and gentlemen. De Júlio, na Aspirina B.

A compreensão é lenta. Da Cristina Nobre Soares, no Em Linha Recta.

Se Marx ressuscitasse. De José Carlos Alexandre, n' A Destreza das Dúvidas.

Brincar ao comunismo. Do José Pimentel Teixeira, n' O Flávio.

Nunca o terror foi tão longe como em Shoah. Do Carlos Natálio, em Ordet.

Nunca saí do liceu. Do Manuel S. Fonseca, no Escrever é Triste.

Bem-vindos à Damaia. Do Carlos Guimarães Pinto, n' O Insurgente.

O Verão Kodachrome. Da Carla Maia de Almeida, n' O Jardim Assombrado.

Personagens de férias. De Maria do Rosário Pedreira, no Horas Extraordinárias.

Blogue da semana

Pedro Correia, 29.07.17

Gosto sempre de os ler, mesmo quando discordo deles - o que acontece com frequência. Reconheço que falam de assuntos que dominam, procuram sustentar as suas teses em dados factuais (evitando o "achismo", praga nacional) e não confundem contundência com injúria (doença infantil das redes sociais). Merecem destaque pela resistência à espuma dos dias, contrariando a maré: persistem como blogue "à moda antiga" - especializado em temas económicos - e dão-se bem com isso. Refiro-me ao colectivo d'os Ladrões de Bicicletas, feliz nome não por acaso em homenagem ao filme homónimo de Vittorio de Sica, obra-prima do cinema interpretada por gente comum.

O blogue celebrou recentemente dez anos, com vitalidade certificada: 158 mil visualizações mensais, em média, e quase dez mil seguidores no Facebook. E até já originou um livro.

Destaco-o esta semana. Com parabéns atrasados, mas ainda a tempo.

Despesas de manutenção é um eufemismo, os clientes da CGD vão pagar estas trampas

Sérgio de Almeida Correia, 29.07.17

A Caixa Geral de Depósitos é o terceiro maior credor da Instituição

 

Empresa que deve 278 milhões à CGD entra em insolvência

 

Artlant: empresa a que a CGD emprestou mais de 500 milhões declarada insolvente

 

O banco público, terceiro maior acionista da empresa, detém mais de metade da dívida. A CGD corre o risco de perder 137 milhões de euros

 

É o caso da PFR Invest - Sociedade de Gestão Urbana, da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, cuja falência foi decretada, em Fevereiro, pelo Tribunal de Amarante, e tem como principais credores a CGD e o Novo Banco

 

Este é apenas um dos dossiers que ajuda a perceber a degradação do balanço do banco do Estado, que entre 2011 e 2015 contabilizou mais de 6000 milhões de créditos perdidos

 

CMVM manda liquidar fundo “falido” gerido e financiado pela CGD

 

As sociedades veículo - criadas em 2010 para receber os activos tóxicos do BPN - têm atualmente uma dívida com garantia do Estado à Caixa Geral de Depósitos que «ascende a 4,89 mil milhões de euros», disse esta sexta-feira a secretária de Estado do Tesouro e das Finanças, no Parlamento

 

Sempre a somar em perdas. Têm sido assim os últimos anos para os contribuintes portugueses quando é a banca que aparece na parcela da conta. Se somarmos as contas provisórias dos três bancos que faliram, foram vendidos ou resolvidos, os portugueses vão assumir perdas de cerca de 8,5 mil milhões de euros

 

É isto e outras coisas do mesmo jaez que os clientes da CGD vão pagar, até porque fora de Portugal há muitos bancos, incluindo um banco detido pela própria CGD, que não cobram despesas de manutenção. Mas como alguém disse, "nos bancos as asneiras e os maus negócios pagam-se cinco anos depois".

A ditadura

Pedro Correia, 28.07.17

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O Supremo Tribunal de Justiça da Venezuela, nomeado por juízes escolhidos a dedo pelo Presidente Nicolás Maduro, sentenciou que  é legítimo o despedimento de funcionários públicos ou trabalhadores de empresas públicas que tenham manifestado satisfação ou alegria - ainda que de forma "alegórica" - pela morte do ex-chefe do Estado, Hugo Chávez, falecido a 5 de Março de 2013 mas ainda considerado "líder máximo da revolução bolivariana".

O acórdão, votado por unanimidade, valida o despedimento  - legitimado no tribunal de primeira instância - de um funcionário da empresa estatal de telecomunicações Movilnet que revelou "falta de respeito e da compostura que todo o trabalhador deve demonstrar no seu labor quotidiano" ao ter "celebrado [a morte de Chávez] de forma alegórica, dentro do seu posto de trabalho, frente aos seus companheiros de trabalho e pessoal subalterno".

Estamos perante uma evidente "ruptura da ordem constitucional", como alertou a própria procuradora-geral venezuelana Luisa Ortega, oriunda das fileiras do chavismo. A ruptura chega ao ponto de Maduro pretender impor ao país um novo texto constitucional, rasgando o de 1999, produzido durante o mandato do seu antecessor.

Infiltrando-se em todos os aspectos do quotidiano, a tirania vigente pretende impor-se pelo medo num país carcomido pela corrupção que tem a maior taxa de inflação do planeta, viu o produto nacional bruto cair quase 20% em 2016 e a mortalidade infantil subir 30% desde 2015, e onde é raro o dia em que não seja assassinado pelo menos um simpatizante da oposição, abatido pelas forças da (des)ordem. Há mais de 400 presos políticos nos cárceres venezuelanos. O direito de manifestação, que custou 112 vítimas mortais nos últimos quatro meses, foi já oficialmente banido por decreto presidencial. De tal maneira que um cidadão pacífico se arrisca a ser detido pela temível polícia política apenas por tocar violino na rua como forma de protesto.

A Venezuela chavista é hoje um país sem esperança, sem pão, sem medicamentos, sem trabalho, sem esperança e sem liberdade. Uma ditadura.

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