Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Sim, Senhor Ministro (25)

Pedro Correia, 31.03.16

 

article-0-031009E80000044D-711_634x400[1].jpg

 

Ministro dos Assuntos Administrativos, Jim Hacker - Não podemos fechar os olhos perante algo moralmente errado.

Sir Humphrey Appleby, secretário-geral vitalício do ministério - O Governo não deve preocupar-se com questões morais.

Ministro - Então deve preocupar-se com quê?

Sir Humphrey - Deve preocupar-se com a estabilidade, deve manter as coisas em funcionamento, evitar a anarquia, impedir que a sociedade se desmorone, garantir o amanhã.

Ministro - Para quê?

Sir Humphrey - Perdão...?

Ministro - Qual é o objectivo supremo do Governo senão fazer o bem?

Sir Humphrey - Não se trata de uma questão de bem ou mal: é uma questão de ordem ou caos. A mim compete-me apenas aplicar a política do Governo.

Ministro - Mesmo que a considere errada?

Sir Humphrey - Quase toda a política do Governo está errada. E não é por causa disso que deixa de ser impecavelmente aplicada.

Ministro - Humphrey, conhece algum funcionário público que se tivesse demitido por imperativo de consciência?

Sir Humphrey - [admirado] De maneira nenhuma! Que sugestão horrível!

Agarrem-me senão eu bato-lhe

Pedro Correia, 31.03.16

Rui Rio deu uma entrevista na antevéspera do congresso do PSD para revelar ao País que não estará presente na reunião máxima dos sociais-democratas. Se fosse, avisou em tom grave, teria que criticar Pedro Passos Coelho e "perturbar" o conclave. Assim limita-se a picar o ponto na comunicação social - onde sempre vence por goleada.

É uma variação, como qualquer outra, daquele velho dito "agarrem-me senão vou-me a ele". Rio é, aliás, especialista neste número. Faz agora um ano, esteve quase a candidatar-se a líder do PSD. Faz agora um ano, esteve quase a candidatar-se à Presidência da República. Nunca lhe faltou imprensa amiga a desvendar-lhe o pensamento, dando nota de que estaria pronto para "avançar" fosse para o que fosse.

Eterno candidato a candidato, dá sempre a sensação de que se move. Mas é pura ilusão de óptica, pois acaba por nunca sair do mesmo sítio.

O cerco aperta-se.

Luís Menezes Leitão, 31.03.16

Escrevi aqui que Passos Coelho estava a deixar o PSD ficar absolutamente cercado, quer pelos partidos da maioria governamental, quer pelo CDS, quer até pelo próprio Presidente da República. Na verdade, Marcelo não perde uma oportunidade para desancar Passos e apoiar Costa. Aliás, Marcelo e Costa até parecem o Senhor Feliz e o Senhor Contente da rábula criada por Nicolau Breyner. Hoje estou convencido de que o (para mim na altura) incompreensível apoio de António Costa a Sampaio da Nóvoa não visava outra coisa que não permitir a eleição de Marcelo, como veio a ocorrer. E Marcelo tem-se mostrado extremamente agradecido, nunca vacilando no apoio ao actual governo. 

 

Passos Coelho, pelo contrário, parece o Senhor Triste, todos os dias suspirando de saudade pelos tempos em que chefiava o governo e só falando desses tempos. Ainda ontem, no debate quinzenal, foi patético vê-lo pedir a António Costa que avaliasse as reformas que o governo anterior fez, parecendo completamente focado no passado e ignorando os combates do presente, que são duríssimos e onde não se pode fraquejar.

 

Só que até ontem faltava mais um elemento na equação: o surgimento da oposição interna. Essa oposição surgiu agora, com uma entrevista de Rui Rio, logo seguida de outra entrevista de Paulo Rangel. Ambos alinham pelo mesmo diapasão, dizendo em primeiro lugar o óbvio: que a oposição que Passos Coelho está a fazer ao governo está a ser muito frouxa e que o PSD precisa de uma renovação profunda, como aliás o CDS fez agora. O que é curioso, no entanto, é que não assumam desde já o objectivo (para todos evidente) de conquistar a liderança, dizendo Rui Rio que nem sequer se vai dar ao trabalho de ir ao congresso e Paulo Rangel que se sente muito bem no Parlamento Europeu.

 

Estamos assim perante o calculismo típico dos políticos portugueses em que António Costa fez escola. O objectivo daqueles dois é fritar Passos Coelho em lume brando durante dois anos ou mais, para depois lhe dar o golpe mortal nas vésperas das eleições. A Passos Coelho estaria assim reservado o papel de ser o António José Seguro do PSD, que irá de vitória em vitória partidária esmagadora — mesmo com 95% — até à derrota final, no momento em que o D. Sebastião há muito aguardado surgirá numa manhã de nevoeiro, para depois disputar as eleições sem o peso dos anos na oposição.

 

Confesso que me irritam profundamente estes esquemas de calculismo político. Era mais que altura de os partidos acabarem com isto. Mas é manifesto que é isso que vai suceder.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 31.03.16

Carmen voltou a casa dos pais para passar o fim de semana. Não sabia o que a esperava mas sentira na voz do pai uma pressa qualquer por definir e percebeu que era importante ir. A instabilidade que a mãe lhe provocava era uma guerra antiga, guerra dela, Carmen, interior, indizível, forte e sem tréguas, nunca seria a perfeição que a mãe entendia como padrão de elevada categoria, nunca seria como o irmão. Martim era mais. Sempre mais mesmo quando era menos. As vagabundagens de Martim não se assemelhavam em nada à vida de Carmen, as asneiras eram múltiplas, as falhas teriam o condão de compor uma lista imensa. Apesar disso, a mãe preferia-o. Era o seu menino.

Carmen debatera-se na adolescência com esse amor maior que, parecia-lhe, era um poder que Martim tinha, subjugando a mãe ao que fosse. A avó era o único porto seguro para Carmen e lembrava-se, ainda agora, de lhe escrever bilhetes com uma caligrafia inaugural, desejando sonhos felizes, dizendo que a amava. A avó correspondia sempre. Quando Carmen chegou aos doze anos, a avó foi internada, ninguém lhe explicou o que era, ninguém tinha essa preocupação com “as crianças”. A avó regressou débil, muito mais velha. Carmen teve dificuldade em processar essa constatação de velhice, a primeira: nada é eterno, a minha avó não estará sempre comigo. Atormentou-se com ideias de morte e fez planos de fuga caso a avó não sobrevivesse. O cansaço instalou-se, os movimentos eram mais lentos, mas a avó manteve-se, até Carmen fazer vinte e três anos, a avó manteve-se ali, uma bolha segura para a qual a menina que ela tinha sido podia voltar. O pai concedia-lhe esse privilégio de estar com a avó.

A mãe não comentava a relação da filha com a sogra, talvez porque a sua própria mãe não estivesse disponível. A avó materna de Carmen morrera pouco tempo antes dela nascer. Via-lhe as fotografias e interrogava-se se gostaria tanto dessa avó roubada ao tempo. A mãe nunca lhe contava nada sobre esse lado da família, Carmen tinha apenas uma avó, portanto. A mesma que encarava Martim com uma certa contrariedade, facto que Carmen explorou com alegria uma vida inteira. Ele tinha a mãe, ela tinha a avó. E nenhum tinha, verdadeiramente, o pai. O pai não era um homem para se ter, pouco dado aos afectos, sempre sério, mantinha-se ausente por opção e mesmo quando a mãe perdia a compostura com qualquer detalhe da vida quotidiana, o pai limitava-se a dizer

 

Menos, Maria Luísa. Menos.

 

Carmen chegou a Coimbra era o fim da tarde. O corpo denunciava o cansaço e, dentro dela, a ansiedade crescia. Uma espécie de guerrilha entre a cabeça e o corpo: a cabeça a debitar perguntas, a reviver momentos, frames da vida; o corpo a pedir o regresso a casa, a Lisboa, numa agonia de antecipação centrada no rosto da mãe, Maria Luísa. Não podia correr para casa da avó, não podia sentir-se feliz de novo. Pensou ainda em Jaime e na forma como não estavam um no outro, nunca tinham estado. Enganara-se. Iludira-se. Ele era agora uma imagem difusa. Era uma das suas especialidades. Carmen voltou à sensação que a diminuía, não saber lidar com o todo da sua vida. E com o menos que sentia ser.

Paulo fez a auto-estrada com irritação, com a ideia absurda de estar apenas a ser um filho perseguidor, um mini marido, controlador. No dia anterior, uma paciente tinha-lhe dito que o filho mais velho era uma espécie de marido, ele que controlava as contas, os jantares, os humores da mãe, mesmo tendo apenas treze anos. Paulo ouviu a mulher com atenção, era o que fazia sempre, ouvia com atenção. Talvez nunca tivesse dado à mãe, a Laura, essa possibilidade. Estava demasiado zangado com ela. Consigo. Importava perceber que acatara o exercício de ser quem Laura precisava que ele fosse, mesmo que isso fosse, por si só, uma castração. Paulo conduzia dentro dos limites da lei e até isso o enjoava, ser certinho e aplicado. Carregou no acelerador e chegou a Coimbra em menos de uma hora. Onde procurar Laura, era outra questão.

Carlos percebeu que teria um problema, uma aflição, um pesadelo quando decidiu ir fumar à janela. Maria Luísa odiava o cheiro do tabaco, com odiava quase tudo que o implicava directamente. Carlos geria o silêncio. Há anos que o fazia, portanto era quase automático. Esquecia-se do som da sua voz a ressoar na casa gigante. À janela viu a mulher e percebeu que não era só uma mulher. Laura. Do outro lado da rua, estava Laura, a mãe do seu filho, a mulher que não lhe diria maldades com a rapidez de Maria Luísa, mas que o odiava, só podia ser assim: o ódio forrava a memória de tudo, em especial do que ele, Carlos, não conseguira fazer. Laura teria apenas ódio por ele, ele que ainda se recordava do toque da pele dela, a cova do ladrão no pescoço, a forma como o corpo dela mergulhava no seu.

O táxi parou junto à casa dos pais e Carmen teve uma hesitação. Pagou e agradeceu, sentindo que o taxista contabilizava os seus gestos, que o homem veria com desagrado a sua forma de suspirar. Fechou a porta do táxi e encarou a casa. Viu o pai à porta, esperava-a. Não. Uma mulher passou por perto, roçou-lhe o ombro, abriu a porta do jardim e disse

 

Olá Carlos.

 

O pai quase que sorriu, Carmen pareceu-lhe ver um sorriso.

Lisboa encerrava um nevoeiro cruel. A luz tinha desaparecido. Carlota mirava as estatuetas que estavam na estante e considerava o ridículo de comprar artesanato. Ou qualquer outra coisa. Sentia-se deprimida e não percebia. Não se percebia. Ligou a Carmen que a informou da sua ida a Coimbra. Pouco adiantou sobre o seu estado de espírito, Carmen que fosse em paz. Ligaria a Martim? Não, isso é que nunca.

Martim analisou com atenção o Facebook de Carlota. Surpreendeu-se com o número de fotografias da irmã. Carmen pareceu-lhe uma desconhecida, sentimento que não lhe provocou nenhuma arrelia, era assim desde sempre. A irmã abraçada à Carlota era apenas um corpo de uma mulher. Não a odiava. Era-lhe indiferente. Como os pais lhe eram indiferentes. O pai ligara a dizer que talvez fosse de ir a Coimbra, a mãe, enfim, a cabeça da mãe, estava pior.

 

Vai perder tudo

 

disse o pai e a frase não suscitou nada no coração de Martim.

 

Tentou o telemóvel da mãe várias vezes. Laura manteve-se desligada

 

O número para o qual ligou não tem voicemail activo

 

Paulo percorreu a cidade sem saber onde ir. Impotência, frustração. Estava perto de desistir quando deu de caras com Carmen em plena Praça da República. Ela estava ali. Numa esplanada, alheada de tudo, a ver o horizonte sem focar nada. Tinha uma tristeza quase esmagadora. Paulo percebeu que existiam camadas distintas em Carmen e que podia passar uma vida inteira a tentar perceber. Quando se aproximou não houve qualquer sobressalto. Ficaram em silêncio. Paulo esqueceu-se da mãe. Laura perdeu-se.

 Tudo se precipitara. Carlos não esperava Laura, nunca tinha esperado e estava convicto do ódio, por isso ficou incapaz, perdido de palavras. Atrás de Laura, viu a filha e encolheu-se. Tudo se precipitara, pensou de novo. Carlos tentou ser gentil. Carmen passou por eles célere, como quem intui o desconforto do pai. Não disse nada. Havia algo que a impedia de cortar aquele fio entre o pai e a mulher desconhecida. Entrou em casa, largou a pequena mochila com uma muda de roupa e saiu. Caminhar seria o melhor.

 

Estou sozinha, Carlos. E preciso de conversar com quem me conhece.

E eu conheço-te, Laura?

Se não tu, quem?

A Maria Luísa conhecia-te bem. Agora não sei...

Ela nunca me aprovou.

Ela nunca te perdoou a liberdade, Laura.

 

Maria Luísa estava deitada. Os olhos semicerrados. Parecia uma senhora dentro de uma tela barroca, as rendas da camisa de dormir, o folho do lençol, a cama em dossel. Tudo estava parado no tempo. Maria Luísa mantinha uma das mãos junto ao peito e via-se um cristo redentor de ouro, pendurado no seu pescoço. O silêncio dominava a cena e Carlos, indiferente, já não absorvia nada e tão pouco se cuidava nos esforços para não fazer barulho. Entrou no quarto com à-vontade. Laura ficou à porta.

Paulo sentou-se e pediu um café. Carmen sorriu ligeiramente. O telemóvel de Paulo estava aos berros dentro do casaco e temeu que fosse a mãe, precipitou-se para o apanhar, era Jaime. Colocou o aparelho no silêncio e, por fim, conseguiu sentir-se descansado. Era curioso como Carmen tinha esse poder sobre ele. Não compreendia como se tinha permitido sentir um certo desgosto por aquela mulher quando namorara com Jaime. A sua fragilidade tinha-o irritado. Agora comovia-o. Ela disse

 

Tive de fugir de casa.

Como os adolescentes?

Sim. Por isso mesmo, terei de voltar.

Eu ando à procura da minha mãe.

Ah.

 

Foi, de repente, a frase

 

Eu ando à procura da minha mãe.

 

e Carmen percebeu quem era a mulher com quem o pai parecia querer conversar a sós, aquele olhar de quem diz, por favor, sai daqui que a levara até ao centro, fora isso: sai daqui. A mulher era a mãe de Jaime e de Paulo, era tão evidente que era a mesma, apesar de Carmen só conhecer Laura de fotografias que tinha visto no computador de Jaime. Ponderou se deveria dizer alguma coisa, mas optou por uma manobra que, de imediato, lhe pareceu cruel: levaria Paulo para casa com ela. Um convite para jantar.

 

Estava à tua espera.

Não estavas, mas eu aqui estou.

Não, Laura, estava à tua espera.

Tu nunca esperaste por ninguém.

Tu enganaste-me. Eu precisava de ti e fugiste e mentiste.

É o que faço.

Não é. Fazes outras coisas e agora ficas comigo, não ficas?

Fico.

 

Carmen não precisou de se esforçar para convencer Paulo de que um jantar em casa dos pais era o programa ideal. Ele não conhecia bem Coimbra, a mãe podia ter ido para outras paragens. Caminharam os dois de braço dado, um gesto antigo. Quando Carmen abriu a porta, Paulo viu uma senhora ao cimo das escadas, vestido azul escuro, colar de pérolas. Foi preciso focar, obrigar o cérebro a ir mais rápido, para vislumbrar a mãe naquelas roupas. Carlos surgiu da sala de estar e perguntou

Conhecem-se?

 

Jaime tentou telefonar a Paulo. Tocou, tocou e nada. O silêncio do irmão incomodou-o. Sentiu-o como uma traição, tornou-se pequeno, infantil, capaz de ser injusto e amuar. Controlou-se. A casa da mãe vazia, Paulo desaparecido, a assistente dele, no consultório, a explicar que não sabia, não tinha como. Jaime decidiu que era melhor espairecer, tentar não pensar nisso. Na mãe. Em Paulo. Estava incapaz de destrinçar a realidade à sua volta e tinha um pressentimento, a ideia de um mau pressentimento. E, nesse momento da decisão de se alhear, ouviu

 

Jaime? Certo?

 

Martim estendeu-lhe a mão e abriu um sorriso que surgiu inesperado. Jaime sabia que Carmen odiava o irmão. Não era um ódio recente, era visceral. Ela tinha dito

Ele não pertence. Sabes o que é viver com uma pessoa que não encaixa?

Jaime sabia. A mãe era a maior lição de vida sobre pertencer ou não pertencer, sobretudo a parte de não encaixar. Martim hesitou e depois perguntou

 

Bebemos um copo?

 

Jaime acenou de forma imperceptível, nem sim, nem não, mas Martim já tinha decidido que tomariam algo, fosse o que fosse. Jaime, perdido, entrou num lobby de hotel, seguindo as passadas aceleradas de Martim. Temia o pior.

 

Calculo que a minha irmão não tenha falado de mim.

 

Martim disse a frase sem qualquer ressentimento, cada palavra dita de forma clara, sem hesitação, num tom de voz que não o denunciava. Jaime sorriu. Não tinha nada para lhe dizer. Rodou o copo de whisky na mão. Martim não precisava de retorno, bastava-lhe público.

 

A Carmen é... Não sei bem, conheço-a mal. Sei que nunca me gramou. Sou o irmão mais velho de quem a mãe gosta. A Carmen tem falta de mãe.

 

Jaime voltou-se para a imagem de Laura e, como sempre, associada à mãe estava Paulo, o irmão salvador.

Paulo fixou-se na imagem estranha da mãe, refeita com a roupa delicada de Maria Luísa. A voz pareceu-lhe diferente. Os anéis tinham desaparecido, o cabelo estava apanhado. A mãe estava sobre o efeito de algo que Paulo não entendia. Depois Maria Luísa falou e Paulo deixou-se prender pelo espanto da outra mulher, a desconhecida frágil, de roupão, que encostada a Laura, sorria idiotamente. Ela disse

 

Carmen, trouxeste um amigo? Que bom, querida.

 

Laura passou pelo filho e não o olhou. Não era ela. Paulo manteve-se calado, sempre calado, incapaz de entender, perplexo com tudo, a casa, o cenário, as personagens. Podia pedir para sair, podia. Não fez nada. Encaminharam-se para a sala de estar e Carmen pegou-lhe na mão. Tudo era estranho.

Maria Luísa tinha uma maneira especial de falar, um tom de voz baixo que obrigava ao silêncio e os olhos dela eram hipnóticos. Carlos e Laura fixavam-na e, ao mesmo tempo, fixavam-se. Estavam frente a frente, Maria Luísa a meio, no sofá. Carmen não conversava com ninguém e Paulo observava. Era como estar numa sessão de cinema. Paulo descobria a mãe, e dentro da mãe outra mãe. Por fim, perguntou

 

Conhecem-se há muito tempo?

 

Carlota passeou no facebook a ver se se metia feliz, se conseguia chegar a uma fórmula de sossego e se deixava contaminar por alguns posts daquelas pessoas que estão sempre a alardear felicidade, verdadeira ou falsa, tanto lhe fazia, não as conhecia, apenas lhe apetecia um mundo mais cor de rosa, ou​ talvez mesmo só​ ver se ​conseguia. O facto de Carmen estar fora era apenas um contratempo. Queria dizer-lhe que as asneiras não têm previsão e que não tem mãe para lhe fazer avisos adolescentes. Nada disso. Está sozinha. Com o seu corpo a borbulhar uma ideia de vida, lá dentro. Carlota vê os gatos e os cães, os gifs com John Travolta, e tenta, tenta desesperadamente, não chorar. Não se revê nesse destroço imprevisível de querer tirar do peito uma angústia que não corresponde a quem é. Carlota faz um esforço, limpa o rosto, pensa-se forte e feliz e depois desiste.

 

Carlota passeou no facebook a ver se se deixava contaminar por alguns posts daquelas pessoas que estão sempre a alardear felicidade, verdeira ou falsa, tanto lhe fazia, não as conhecia, apenas lhe apetecia um mundo mais cor de rosa, ou​ talvez mesmo só ver se ​ conseguia chegar a uma fórmula de sossego. O facto de Carmen estar fora era apenas um contratempo. Queria dizer-lhe que as asneiras não têm previsão e que não tem mãe para lhe fazer avisos adolescentes. Nada disso. Está sozinha. Com o seu corpo a borbulhar uma ideia de vida, lá dentro. Carlota vê os gatos e os cães, os gifs com John Travolta, e tenta, tenta desesperadamente, não chorar. Não se revê nesse destroço imprevisível de querer tirar do peito uma angústia que não corresponde a quem é. Carlota faz um esforço, limpa o rosto, pensa-se forte e feliz e depois desiste.

 

Laura olhou o filho do outro lado da mesa, havia um silêncio quase confortável, apesar de Maria Luísa pontuar com uma outra pergunta. Carlos não a olhava nunca, tão pouco respondia, permanecia fixado em Laura, em suspenso, capaz de dizer qualquer coisa a qualquer momento mas sem o fazer. Carmen arrependera-se já de não ter explicado que Paulo era filho de Laura, incomodada com o silêncio entre os dois e esse anúncio de ligação. Havia algo perturbador em tudo aquilo. O pai tinha-lhe dito que a mãe não estava bem e, de repente, a mãe parecia ter rejuvenescido e dirigia-se a Laura com um entusiasmo pouco habitual. Paulo repetiu a perguntar que tinha ficado por se saber. Como se tinham conhecido? E tinha sido há muito tempo? Laura começou a responder, hesitante, mas Maria Luísa disse que contaria a história e contou.

Paulo e Carmen perceberam coisas distintas. Maria Luísa não se enganou em nada, a percepção de cada um estava limitada à informação prévia que possuíam e, por isso, tinham perguntas a fazer, mas não conseguiam. Maria Luísa imponha um silêncio. Era o seu palco. O pai de Carmen, Carlos, levantou-se para ir fumar. Laura manteve-se, imperturbável, desconhecida para o filho, incapaz de o olhar directamente. Paulo percebeu que a mãe tinha um passado mais desfeito do que alguma vez imaginara e que Maria Luísa era quem a dominava, era aquela a pessoa que podia colocar Laura no sítio certo. Carmen, por seu turno, só se encantou com a amizade antiga, tão visceral, de grande pertença e identificação e teve pena do pai, ele que não fazia parte daquela relação umbilical que Laura tinha com a sua mãe.

Havia ali vários enganos e um mal estar crescente. Laura sabia que iria rebentar, fazer explodir a bolha da decência e manchar o resto do serão com palavras que seriam outra guerra, um conflito desconhecido de Paulo ou de Carmen, uma história antiga que a ligava a Maria Luísa e a Carlos. Estragar a harmonia era a sua forma de estar e, reclamando uma liberdade que Maria Luísa condenava, Laura explicou o inexplicável.

 

Nós somos os pais do teu irmão, Carmen. Eu sou a mãe, Maria Luísa é a mãe adoptiva. Carlos é o pai. Martim é teu irmão, Paulo.

 

Maria Luísa, em sobressalto, mexendo-se de repente, encarou Paulo com surpresa. Houve uma interrupção no correr do tempo, ficaram todos suspensos e, por fim, Carmen riu, riu de forma histriónica, sem qualquer elegância.

 

Muito bem, muito bem. Portanto, não foi incesto por pouco.

 

Carlos, regressado à sala nesse instante, interrogou.

 

Incesto?

 

Prático, recuperado do espanto e da dor, Paulo explicou que Carmen namorara o Jaime, seu irmão, filho de Laura e, desse vez, foi Maria Luísa quem se riu até que as lágrimas começaram a surgir no olhos azuis transparentes.

 

Não foi incesto, mas foi por pouco. O teu pai não é o pai do Paulo ou do Jaime.

Sim, Senhor Ministro (24)

Pedro Correia, 30.03.16

article-0-031009E80000044D-711_634x400[1].jpg

 

Ministro dos Assuntos Administrativos, Jim Hacker - Você não me percebeu: eu quero mudanças imediatas. Agora.

Sir Humphrey Appleby - Agora...?

Ministro - Percebeu!

Sir Humphrey - Mas, senhor ministro, as coisas levam tempo a fazer de imediato.

Ministro - Ora aí estão as três máximas da função pública: leva mais tempo a fazer as coisas depressa, é mais caro fazê-las baratas e é democrático fazê-las em segredo!

Sir Humphrey - Eu não me refiro ao tempo político, mas ao tempo real. Os funcionários públicos crescem como carvalhos, não como ervas. Florescem e crescem como as estações do ano. Amadurecem como...

Ministro - Como você.

Sir Humphrey - ... Como o Vinho do Porto, ia eu a dizer.

Saudades antecipadas de Obama

Pedro Correia, 30.03.16

 

Barack Obama não foi o santo milagreiro que alguns desejavam. Mas prepara-se para deixar um país melhor do que encontrou ao tomar posse, em Janeiro de 2009. Os Estados Unidos, embora longe da prosperidade de outrora, registam crescimento económico, o desemprego foi reduzido para metade, a inflação situa-se a níveis residuais e nunca tantos americanos beneficiaram de medidas de protecção social como no seu mandato.

No plano externo, o Presidente agiu com prudência no vespeiro do Médio Oriente, enfrentou com firmeza as tentativas de expansionismo russo e pôde anunciar ao mundo a captura de Bin Laden - cérebro dos atentados do 11 de Setembro e autoproclamado inimigo público nº 1 dos EUA. Já nesta recta final do mandato, obteve dois trunfos na frente externa, levando o Irão a admitir restrições ao programa nuclear e pondo fim a quase seis décadas de congelamento das relações diplomáticas com Cuba.

 

"Vim aqui enterrar os restos da Guerra Fria nas Américas. (...) Acredito que os cidadãos devem ser livres para falarem sem receios, para criticarem os governos e organizarem protestos de forma pacífica. Acredito que o Estado de Direito não inclui a detenção arbitrárias de pessoas por exercerem esses direitos. E, sim, acredito que os eleitores devem poder escolher os seus governos em eleições livres e democráticas. El futuro de Cuba tiene que estar en las manos del pueblo cubano", declarou Obama há uma semana no Grand Teatro de Havana, num discurso que foi transmitido em directo pelos meios de comunicação do país, ainda há pouco especializados em diabolizar os Estados Unidos.

Importante por este carácter inédito, na primeira viagem de um Presidente americano a solo cubano desde 1928, o discurso confirmou um Obama conciliador e diplomático, mas também firme nos princípios e suficientemente realista para perceber que a prioridade estratégica de Washington quanto ao continente americano é quebrar o eixo Havana-Caracas para isolar o insolvente regime chavista e proporcionar aos cubanos uma abertura idêntica à que Richard Nixon possibilitou na China maoísta em 1972. E ninguém parece ter percebido isso tão bem como Fidel Castro, como demonstram as farpas dedicadas pelo ex-ditador a Obama, que recusou vê-lo nesta visita.

 

O inquilino da Casa Branca - que viajou acompanhado de vários membros da sua administração, cerca de 40 parlamentares e uma larga comitiva de empresários - aposta forte na  "sedução da democracia" na ilha, situada a escassos 150 quilómetros da costa norte-americana. Semeia agora o que o seu sucessor em Washington colherá mais tarde. Honrando as melhores tradições da política externa do seu país, nomeadamente o que fizeram Nixon ao visitar Mao Tsé-tung em 1972, e Ronald Reagan na sua bem-sucedida deslocação ao Kremlin em 1988. Nada ficou como antes, tanto em Pequim como em Moscovo.

Venha quem vier depois dele, pressinto que não tardaremos a ter saudades de Obama. Do seu gesto inspirador, da sua palavra eloquente, da sua apaziguadora bonomia. Em suma: da sua decência, que parece um pouco fora de moda e muito deslocada no tempo.

Cine-Espanha (7) - Negociador

Diogo Noivo, 30.03.16

Negociador.jpg

 

Quando vi o Negociador pela primeira vez, sem leituras prévias ou comentários de quem já o tivesse visto, a história pareceu-me familiar. Mas não perdi muito tempo a tentar perceber porquê. O filme conquistou-me quase de imediato por aquilo que demonstrou ser: uma longa-metragem bem documentada, com uma estrutura que se via ser o resultado de muito e bom trabalho de investigação sobre a ETA e, em particular, sobre os vários processos negociais que envolveram governos democráticos e organizações terroristas. A atenção dada aos detalhes e a capacidade para destacar os aspectos mais sensíveis de uma negociação deste tipo são admiráveis.

 

Mais importante, o Negociador marca por uma inteligência e um bom gosto raros: pega num tema sério e melindroso como o terrorismo e olha-o com humor negro magnífico, sem incorrer em desconsiderações pelas vítimas e sem menorizar a complexidade do problema. De uma forma simples que não compromete o rigor que o tema exige, o filme expõe o ridículo do terrorismo etarra e dos processos negociais entre a ETA e os governos de turno. Por outras palavras, o Negociador enfatiza os momentos onde o absurdo da realidade supera a ficção. Destaco ainda que consegue abordar o terrorismo etarra sem tomar as dores dos partidos políticos – o que, dada a tensão que o assunto gera em Espanha, é louvável. Esta postura, mais do que cobardia política ou cómoda equidistância, é arte.  

 

 

Depois de muito andar, percebi a razão de me ser familiar: o filme é uma adaptação livre de “ETA: Las claves de la paz - Confesiones del negociador” (Aguilar, 2011), um livro que li logo no ano em que foi publicado. Escrito pelo jornalista Luis Rodríguez Aizpeolea e por Jesús Eguiguren, presidente do Partido Socialista de Euskadi (País Basco), além de estratega e executante de um processo negocial com a esquerda abertzale e com o terrorismo basco, “ETA: Las claves de la paz” é uma janela muito impressiva para os bastidores de uma negociação que ocorreu entre 2000 e 2006. Em cerca de 300 páginas, explicam-se com detalhe os procedimentos e alçapões de uma negociação política com uma organização terrorista. Analisam-se também as divergências políticas existentes nos meandros do terrorismo basco, tal como os ciclos de vida de grupos armados como a ETA. Tratam-se ainda as relações de causalidade entre terrorismo e anti-terrorismo. Se descontada a hagiografia de José Luis Rodríguez Zapatero, apresentado como herói e único responsável político pelo fim da ETA, o livro é um testemunho imperdível.

 

Borja Cobeaga, realizador e argumentista de Negociador, colhe da experiência de Jesús Eguiguren os elementos necessários a filme sólido, sóbrio e plausível, dono de um humor que o El País classifica de dolente, negríssimo, brilhante, trágico e atroz. A semelhança entre Jesús Eguiguren e Manu Aranguren (Ramón Barea), respectivamente, negociador real e negociador ficcionado, resume-se a um espírito castiço e echado para adelante segundo o qual “o mais simples é o que melhor funciona”. Tudo o resto é um grande filme, feito por um realizador com uma filmografia ainda curta, mas que se agiganta com este Negociador.

 

Realizador e Guionista: Borja Cobeaga

Elenco: Ramón Barea, Josean Bengoetxea, Carlos Areces, Melina Matthews, Jons Pappila, Raúl Arévalo (protagonista em La Isla Mínima, mas aqui com um papel secundário).

Ano: 2014

Prémios Goya: 1 nomeação na 30ª edição dos prémios Goya (2016) – Melhor Guião Original. Perdeu para Truman (2015, de Cesc Gay), o grande vencedor dos Goya neste ano de 2016 – um filme que oportunamente trarei ao Cine-Espanha. Na opinião deste escriba, ainda que se trate de um filme simples e sem grandes ambições, Negociador merecia mais, muito mais, desde logo nas nomeações.

Chapeau!

Luís Menezes Leitão, 30.03.16

 

Infelizmente muitas vezes tenho que dar razão aos que dizem que Portugal tem a direita mais estúpida do mundo. Na verdade, imensas vezes vemos à direita serem praticados actos gratuitos, que irritam profundamente as pessoas comuns, e que nem sequer trazem qualquer benefício para o país, resultando apenas da teimosia dos governantes. Infelizmente muitas vezes não há, porém, espírito crítico para evitar esses disparates, acabando por produzir o afastamento dos partidos da área do poder durante muitos anos.

 

O governo de Cavaco SIlva já no seu estertor foi um perfeito exemplo disso. Uma das medidas mais loucas que adoptou foi fazer Portugal seguir o fuso horário de Berlim em ordem a facilitar os contactos com os nossos parceiros europeus. Só que isto obrigava os portugueses a levantar-se de madrugada, sair dos empregos no pico do calor, e ter sol até depois das 23 horas. E mesmo depois de se ver isso, o governo foi incapaz de emendar o disparate, não querendo saber da irritação que estava a causar nas pessoas.

 

Outro exemplo dos disparates do governo de Cavaco Silva foi ter abolido a tolerância de ponto no Carnaval, gesto que ninguém entendeu. Nesse dia, o PSD perdeu vinte pontos nas sondagens, e ficaria arredado do governo por sete anos, sendo que o próprio Cavaco perderia as presidenciais, só regressando 10 anos depois. Há gestos que custam caro a quem os pratica.

 

Passos Coelho não resistiu a fazer um disparate semelhante com a abolição dos feriados, neste caso com a gravidade de mexer com símbolos nacionais importantíssimos para a comunidade, como a implantação da República a 5 de Outubro ou a Restauração da Independência a 1 de Dezembro. Mais uma vez, tratou-se de um gesto gratuito, sem qualquer benefício e que só poderia trazer custos eleitorais. Mas Passos Coelho comportava-se como um iluminado e tinha o fanatismo próprio dessa estirpe. Por isso foi incapaz sequer de reconhecer o erro e repor os feriados no final do seu mandato. Se o tivesse feito, talvez não existisse hoje um governo de esquerda. Mas, como Passos Coelho sempre disse que se estava a lixar para as eleições, acabou por se lixar a ele próprio e ao PSD no seu conjunto.

 

António Costa é que percebeu muito bem o valor dos símbolos nacionais e não hesitou em repor imediatamente os feriados, nem sequer querendo saber do período de transição que a lei estabelecia. Mas fez mais do que isso. Aproveitando as hesitações de Marcelo Rebelo de Sousa resolveu referendar o diploma, o que é uma simples formalidade, em cerimónia pública no Palácio da Independência. Com isso, não apenas capitalizou o erro de Passos Coelho a seu favor, mas deu-lhe um tiro mortal no seu autoproclamado estatuto de primeiro-ministro no exílio. Isto é a política pura e dura. Chapeau!

Um século de arte austríaca

Sérgio de Almeida Correia, 30.03.16

20160330_103012.jpg

Se ainda não viu, ainda está a tempo de visitar a estupenda mostra de pintura austríaca, cobrindo um século entre 1860 e 1960, que está patente no Museu de Arte de Macau. Dividida em Sonata, Andante, Minuet e Finale, a exposição reúne 89 obras de 34 colecções de entidades públicas e privadas. Partindo do evento designado como Secessão de Viena, no século XIX, podemos apreciar obras de Klimt, de Schiele, de Moser, de Kokoschka, de Pauser, de Olga Wisinger-Florian e de muitos outros. Naturezas mortas, auto-retratos, paisagens de montanha e do campo, algumas de cidades de Itália, como Positano e Nápoles, também de Xangai, cenas do quotidiano, circos e alguns nus belíssimos. 

20160330_102000.jpg

Lamentável é que a língua portuguesa continue a ser tão maltratada pelas entidades oficiais da RAEM. O estatuto de igualdade das línguas é cada vez mais uma miragem. Dos discursos oficiais à prática dos serviços públicos, dos tribunais à cultura, sem esquecer o que aconteceu recentemente na Universidade de Macau, a língua portuguesa continua a levar tratos de polé sem que as autoridades oficiais portuguesas lhe dêem a atenção que o assunto merece.

Aquilo de que a comunidade chinesa se queixava, com razão, no período anterior a 1999, e que durante tanto tempo foi descurado pelas autoridades portuguesas, e depois tão mal e tão tardiamente resolvido pelo último soba que por cá andou, é agora alegremente praticado pelas entidades responsáveis da RAEM, inclusive num domínio como o da cultura e num Museu, um dos mais importantes da cidade, numa mostra com características internacionais.

Como pode dizer-se que Macau é uma cidade de turismo, virada para o turismo, multicultural e aberta ao mundo e a quem nos visita, quando uma exposição tão importante como "Um século de arte austríaca 1860-1960" nem sequer tem um catálogo bilingue? Já nem digo em português, que isso é um resquício colonial, mas ao menos em inglês. Quando procurei o catálogo disseram-me que desta vez só havia em chinês. E neste nem os nomes dos pintores aparecem de outra forma que não seja em caracteres chineses. Também as explicações relativas a cada obra só existem em chinês, bem como os painéis informativos relativos aos pintores. Com excepção do painel da entrada e dos que abrem cada uma das partes da exposição, que surgem em chinês, português e inglês, o resto é tudo só para falantes e leitores chineses.

E se isto é assim num Museu de Arte e numa cidade que se diz internacional, quando ainda estamos a mais de trinta anos do final do período de transição, imaginem em que estado chegará a Língua Portuguesa a Dezembro de 2049. A avaliar pelo interesse e abastardamento a que tem sido votada pelas entidades oficiais de cá e de lá, presumo que será vista como uma lamentável excentricidade da Lei Básica da RAEM e da Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau com a qual ninguém se importa e que só serviu para alguns pavões retirarem dividendos políticos e receberem as bugigangas alusivas, que sem qualquer pudor ainda penduram ao peito.

20160330_102429.jpg

(Sergius Pauser, 1896-1970, O Leitor)

20160330_102142.jpg

(Anton Lutz, 1894-1992, Mulher Nua)

Sim, Senhor Ministro (23)

Pedro Correia, 29.03.16

article-0-031009E80000044D-711_634x400[1].jpg

 

Sir Humphrey Appleby - Não está hoje com uma cara muito satisfeita, senhor ministro...

Ministro dos Assuntos Administrativos, Jim Hacker - Suponha que o relatório [ambiental] que encomendámos não é tão conclusivo como você prevê...

Sir Humphrey - Vai ser. Está a ser elaborado pelo professor Henderson, um bioquímico brilhante, de Cambridge.

Ministro - E se ele produzir um relatório inconclusivo?

Sir Humphrey - Nesse caso não o divulgamos.

Ministro - Quer você dizer que o ocultamos?

Sir Humphrey - Não. Quero só dizer que não o divulgamos.

Ministro - Qual é a diferença?

Sir Humphrey - É enorme. A ocultação é um instrumento dos regimes totalitários. Num país livre isso não existe: decidimos democraticamente não o divulgar.

Ministro - E o que digo eu à imprensa e ao parlamento? Vamos fingir que o relatório não existe?

Sir Humphrey - Senhor ministro, existe um procedimento governamental para suprimir... para não divulgar um relatório oficial.

Ministro - A sério?

Sir Humphrey - Sim. Desacredita-se o documento.

Ministro - Como?

Sir Humphrey - Na primeira fase invocam-se questões de interesse público, sugerem-se considerações de segurança...

Ministro -  Importa-se que tome nota? Pode ser útil para desacreditar alguns estudos idiotas elaborados pelo partido.

Sir Humphrey - Diga que o relatório é susceptível de sujeitar o Governo a pressões indesejáveis, por má interpretação.

Ministro - Tudo pode ser mal interpretado. Até o Sermão da Montanha.

Sir Humphrey - Sim. O Sermão da Montanha, se fosse um relatório governamental, nunca seria publicado. Por ser um documento irresponsável: aquilo de os mansos herdarem a terra podia prejudicar irremediavelmente o orçamento da Defesa.

Where have all our heroes gone? ('cover' bloquista do clássico de Bill Anderson)

Diogo Noivo, 29.03.16

bloco-de-esquerda-liberdade-jc3a1.png

 

O regime autoritário angolano condenou 17 pessoas por lerem e discutirem um livro. Por cá, após esta condenação, a ousada denúncia do passado revelou-se uma bravata pré-pubescente, agora posta na gaveta. Aliás, relendo o que escreveu o Rui Rocha aqui no DELITO, não é a primeira vez que, a respeito deste assunto, a coragem do Bloco de Esquerda fica em casa. Heróis sim, mas só na oposição. E as causas nobres que se habituem. 

Aplausos a Marcelo

Pedro Correia, 28.03.16

1022223[1].jpg

 

1. Por ter promulgado o Orçamento do Estado sem deixar de exigir "rigor" na sua execução.

 

2. Por agir nesta matéria com a rapidez que o calendário justifica e o bom-senso impõe.

 

3. Por haver explicado, no essencial, o Orçamento do Estado aos portugueses.

 

4. Por tê-lo feito numa linguagem acessível, em cerca de dez minutos. Ao Presidente da República cabe também, entre os poderes informais de que dispõe, esta pedagogia democrática.

 

5. Por ter dispensado um discurso escrito, demasiado formal e ostensivamente pomposo. O que não significa que tenha falado de improviso, ao contrário do que alguns assinalaram. Façamos-lhe justiça: com Marcelo nunca há improvisos.

 

6. Por ter falado ao País às cinco da tarde, horário até agora impensável para os nossos maus hábitos políticos, pautados pelos jornais televisivos da noite - algo absurdo num mundo onde a informação circula a todo o momento. Todos nos lembramos de uma "importantíssima" declaração de Cavaco Silva anunciada em Julho de 2008 num jornal da manhã e só consumada às oito horas dessa noite, coincidindo com os telediários. O então inquilino de Belém, interrompendo as férias, deixou Portugal em suspenso durante um dia de trabalho para no final a montanha parir um rato.

 

7. Porque com ele, como sublinha o Luís Aguiar-Conraria, "a normalidade constitucional voltou a Belém".

Where have all those songs gone?

Pedro Correia, 28.03.16

 

Este ano, ainda sem atingir um quarto de duração, está a ser terrível para a música. Pelo desaparecimento de vários nomes grandes desta arte, nas suas mais diversas facetas.

Em Janeiro vimos partir Pierre Boulez, David BowieOtis Clay, Hubert Giraud (que compôs canções célebres da canção francesa, como Sous le Ciel de Paris e Mamy Blue), Black (que nos legou Wonderful Life), o guitarrista dos Eagles, Glenn Frey (inesquecível, o seu contributo em temas como  Hotel California e Tequila Sunrise), Michel Delpech (com o seu eterno  Wight is Wight) e dois pilares dos Jefferson Airplane, Paul KanterSigne Toly Anderson.

Em Fevereiro desapareceu Maurice White, vocalista dos Earth, Wind & Fire. Logo seguido de Dan Hicks e Rey Caney. E este Março que ainda não chegou ao fim já se despediu, entre outros, de Naná Vasconcelos, do grande George Martin (que bem mereceu o cognome de Quinto Beatle pela roupagem musical que deu a Eleanor RigbyShe's Leaving Home  e  A Day in Life, entre tantos outros temas) e Frank Sinatra Jr.

Um mês que viu partir também, de forma trágica, um dos ícones da minha adolescência: Keith Emerson, compositor e teclista do trio Emerson, Lake & Palmer. Escutei-os inúmeras vezes - tardes sem fim, noites intermináveis, até os discos se gastarem de tanto rodar sob a agulha: Tarkus, Pictures at an Exhibition, Brain Salad Surgery, Works.

Emerson, segundo li nas notícias, andava deprimido há meses. A depressão tê-lo-á levado a "pôr termo à vida", como se escreve no modo eufemístico tão em voga em certas redacções que cultivam um estilo inócuo e contentinho. Com ele - e creio poder falar pela minha geração melómana - é um pouco mais da nossa juventude que parte também, num adeus irreversível aos dias em que cantávamos Lucky Man. Crentes de que as manhãs inundadas de sol jamais teriam fim.

Pág. 1/12