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Delito de Opinião

A mão que embala os incendiários

Teresa Ribeiro, 31.08.13

Quando morrem bombeiros a ladainha sazonal dos políticos choca-me mais, porque sei - com o saber da experiência feito - que é inconsequente. Há dias Marques Mendes admitiu na televisão que os discursos circunstanciais da época são "hipócritas" porque, assim que o Verão termina, as medidas anunciadas de prevenção e combate aos fogos ficam imediatamente esquecidas até ao Verão seguinte. E reconheceu que esta atitude se tem perpetuado de governo em governo, ou seja, que as culpas estão democraticamente distribuídas por todos os que ocuparam cargos de decisão nas últimas décadas. Os políticos que não estão no activo são assim, desassombrados. A frontalidade é uma forma de exercerem também o seu direito à hipocrisisa.

As medidas que ficam na gaveta de ano para ano são bem conhecidas de todos, já que na época dos fogos são sempre lembradas, nos mais diversos fóruns. É impossível evitar de todo os incêndios florestais, mas os nossos piores anos começaram a somar-se no passado recente, não por acaso. Sei que pouco depois do 25 de Abril a rede de guardas florestais que residia nas florestas foi desmantelada e o combate aos fogos saiu da alçada da então Direcção Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas, onde se concentravam os especialistas, quase todos engenheiros silvicultores de formação. A partir daí foi o caos. Os bombeiros, na época sem treino específico de combate a incêndios florestais, passaram a liderar as operações nas frentes dos fogos com resultados desastrosos.

Se ao nível da formação dos bombeiros muito se evoluiu com o tempo, o resto, tudo em que assentava o antigo sistema de prevenção de fogos permaneceu afastado dos programas governamentais, com destaque para a rede de postos de vigia, com comunicação entre si, a que acediam os guardas florestais (que foi desactivada) e práticas como a abertura e manutenção de picadas e valas para facilitar respectivamente os acessos da floresta em caso de fogo e a sua delimitação.
Também a preservação das espécies autóctones deixou de ser um desígnio. O eucalipto ainda há-de ser promovido a símbolo nacional. Para quem trabalha na indústria da pasta de papel, já o é, com certeza.
A inércia tem diversos factores, também já profusamente enumerados, mas é na falta de vontade política que se consubstancia. É por isso que quando vejo políticos a chorar lágrimas de crocodilo na televisão me repugna. Se há quem possa sentir confiança nas suas palavras são certamente os próprios incendiários.

De Estaline a Gordon Gekko

Pedro Correia, 31.08.13

 

Bem-vindos ao admirável mundo novo. O do trabalho sem direitos, o das jornadas laborais sem horários. Não me refiro às lúgubres linhas de montagem da China ou do Bangladeche, onde mulheres e crianças são atiradas, a troco de quase nada, para satisfazer as delícias consumistas das sociedades "emergentes". Refiro-me a outro género de escravatura contemporânea. À promovida pelos esclavagistas engravatados da City londrina, que utilizam jovens trabalhadores precários como peões da sua alucinada engrenagem do compra-e-vende, espécie de proletariado do nosso tempo que começa a trabalhar ainda antes de nascer o sol e continua agarrada à cadeira e ao telefone depois de o sol se pôr (porque há sempre uma Bolsa a abrir algures, noutro continente).

Um admirável mundo novo cheio de suicidas, em paragens tão diversas como Paris ou Tóquio. E com um novo mártir: um rapaz de 21 anos, oriundo da Alemanha, que trabalhou literalmente até morrer.

Chamava-se Moritz Erhardt, estava há sete semanas como estagiário da sede londrina do Bank of America Merrill Lynch, no sector da banca de investimento. Tinha como herói uma figura do cinema: Gordon Gekko, o implacável corretor interpretado por Michael Douglas em Wall Street, de Oliver Stone. O mesmo Gekko que proclamava: "A ganância é que faz mover o mundo."

 

Colegas que partilhavam a residência estudantil com o jovem alemão encontraram Moritz morto no duche, há duas semanas. Vinha de 72 horas consecutivas de trabalho, sem pausa para dormir. Num meio onde é frequente trabalhar entre 12 e 16 horas diárias, seis a sete dias por semana.

Trabalha-se em piloto automático, muito para além dos primeiros sinais de fadiga e esgotamento começarem a ser emitidos pelo corpo humano: 110 horas semanais, sem fins de semana. Para satisfação permanente da ganância de alguns.

 

O jovem alemão morreu a 15 de Agosto, dia de festas e romarias em Portugal nas quais se conjugam o sagrado e o profano. Dia que chegou a estar na lista dos feriados nacionais a abolir entre nós, por vontade dos Gordon Gekkos lusitanos, pífios aprendizes de Estaline - sem bigode e com camisas Hermès em vez da samarra comunista.

O ditador soviético promovia a "heróis do socialismo" aqueles operários que mais horas consagrassem à patriótica tarefa de produzir em doses brutais. O maior de todos eles foi Andrei Stakhanov, um mineiro que, no dia 31 de Agosto de 1935, terá conseguido extrair 102 toneladas de carvão em cinco horas e 45 minutos.

No amplo formigueiro estalinista, Stakhanov foi apontado como exemplo a seguir: recebeu um caloroso abraço de Estaline, passou a ostentar a Ordem de Lenine, ascendeu a deputado no Soviete Supremo da URSS, teve honras de capa na capitalista Time e deu até origem a novas palavras: stakhanovismo e stakhanovista.

Milhões de soviéticos procuraram seguir este padrão, para louvor e glória da "pátria dos trabalhadores", conduzida pelo grande ditador.

Moritz Erhardt não teve tempo para receber o abraço de ninguém. Infeliz Stakhanov dos nossos tempos, escravo de gravata, sucumbiu em Londres, à hora em que abria a Bolsa de Tóquio, deixando tanta acção por vender e por comprar. "Money never sleeps", como Gordon Gekko ensinou aos seus contemporâneos.

 

Imagens, de cima para baixo: Moritz Erhardt (foto The Times); Michael Douglas, protagonista de Wall Street (1987); Andrei Stakhanov num selo soviético

Ler

Pedro Correia, 31.08.13

Sem luz ao fundo do túnel. De Jorge Bateira, no Ladrões de Bicicletas.

Loucos à solta. Do Paulo Gorjão, na Bloguítica.

O julgamento moral de António Borges. De Luís Aguiar-Conraria, n' A Destreza das Dúvidas.

TC rebaptizado para TC-PEF? Esperemos que não... De Tavares Moreira, na Quarta República.

O Estado irreformável. Do Mr. Brown, n' Os Comediantes.

Para quê? Do João Gonçalves, no Portugal dos Pequeninos.

António Patriota. De Francisco Seixas da Costa, no Duas ou Três Coisas.

Síria - "castiga-se" porque as armas foram químicas. Da Joana Lopes, no Entre as Brumas da Memória.

Hollande, o Conquistador. De Ricardo Lima, n' O Insurgente.

Questões de ADN. Do Paulo Gorjão, na Bloguítica.

Ana Rita Pereira. Do Luís Novaes Tito, n' A Barbearia do Senhor Luís.

Rodrigo Leão, um português excepcional. Do Pedro Rolo Duarte.

Benfica TV. Do João Paulo Palha, no És a nossa Fé.

Foi você que pediu um piropo?

Ana Vidal, 30.08.13


O anedotário nacional soma e segue. Agora é a penalização do piropo, como se não houvesse problemas a sério para nos preocuparmos.


Se não quiser ir preso, cavalheiro, modere a linguagem quando passar por uma boazona (perdão, por uma jovem interessante). Nada de sugestões em vernáculo de calceteiro, nada de fantasias culinárias. Se não conseguir mesmo ficar calado, nunca vá mais longe do que isto: "Minha senhora, permita que lhe diga que a acho particularmente bonita. Nos meus sonhos mais ousados, imagino-me a oferecer-lhe um bombom na Versailles".

CDTSPDERP

José António Abreu, 30.08.13

1. Das duas, uma: ou os juízes do Tribunal Constitucional não sabem interpretar a Constituição, o que, sendo grave, até um pouco assustador, a gente acaba por entender (incompetência é o que há mais por aí), ou a Constituição deveria deixar de chamar-se «da República Portuguesa» e passar a chamar-se «dos Direitos dos Trabalhadores do Sector Público e dos Dependentes do Estado da República Portuguesa», por ser cada vez mais claro não se destinar a proteger os direitos dos restantes.

 

2. «Espero que esta leitura do Tribunal Constitucional do princípio da protecção da confiança não tenha sido tão estreita que no futuro não se possa alterar nada no Estado”, referiu Passos Coelho. Caso contrário, “o Estado só conseguiria financiar-se à custa de impostos e eu não acredito que o país consiga suportar mais impostos para resolver um problema do Estado». Passos Coelho tem razão. Mas ter razão é inútil. Por força da Constituição ou dos juízes do TC (na prática, a distinção é irrelevante), qualquer governo (mesmo este, tão frequentemente apodado de liberal) pode apenas seguir um programa. Mais privatização, menos privatização, é um programa socialista. Tão socialista que, neste momento de crise, o PS aplaude por tacticismo enquanto o BE e o PC aplaudem por convicção.

 

3. Ouve-se frequentemente dizer, em tom de lamento, que PSD e PS são iguais. Claro que sim. Nem quando o desejam podem ser diferentes.

 

4. No fundo, o sonho de Cavaco está a concretizar-se: há uma única via – só não está a ser definida por ele, nem por acordo entre os partidos, mas pelos juízes do TC. Ironia deliciosa é a aplicação caber aos partidos a que teoricamente menos agrada.

 

5. O que suscita a questão: em 2015, PSD e CDS devem ser julgados pelo fizeram ou pelo que tentaram fazer?

 

6. Sendo que a pergunta fulcral talvez seja outra: para que servem as eleições quando a ideologia está constitucionalmente fixada?

Universos paralelos

José António Abreu, 30.08.13

Os sonhos são os universos paralelos mais comuns. Aqueles a que ninguém escapa e em que é impossível não acreditar. Recuso acreditar nos outros, os da ficção científica, os que nascem a cada decisão que se toma. Recuso acreditar existiram milhares de «eus» em universos paralelos, ligados por singularidades espaço-temporais ou lá como se chamam essas coisas. «Eus» que tiraram outros cursos, que reagiram de forma diferente quando conheceram certas pessoas (sim, mulheres acima de tudo), que andam neste preciso momento numa furgoneta desconjuntada algures no Tibete. E recuso acreditar por um motivo extraordinariamente simples: era preciso um azar do caraças para ter ficado com a versão mais desinteressante. Que, evidentemente, é a versão geradora de mais sonhos.

O que estou a ler (13)

Ana Cláudia Vicente, 30.08.13

Enquanto o Adolfo não vem, aproveito o ensejo para falar das minhas leituras. Este foi o Verão no qual menos pude ler, em muitos anos. Um só livro me acompanhou por estes dias : O Coleccionador de Erva, de Francisco José Viegas. Vou a páginas cento e nove, cento e dez:

 

 

 

«Alguma coisa acabou entretanto, alguma coisa que nunca mais registámos no deve e haver, naquela contabilidade inocente das nossas vidas.

Jaime Ramos pensou nisto porque o rosto de Irina era impenetrável, uma espécie de desafio à sua habilidade para arrancar confissões ou para perceber um caminho no meio dos becos dos subúrbios.»

 

Regresso então a Isaltino de Jesus, a Jaime Ramos, ao mundo da investigação de crimes de sangue num Portugal não tão ficcional quanto seria de desejar. Dois traços autorais me prendem a atenção, aí: a presença sensível de um território que nunca é apenas cenário ou decoração; a insistente sombra do insolúvel, apesar do progresso da acção.  Desta feita, há dois russos e uma africana aparecidos sem vida não longe do Porto, e uma portuguesa de velhas famílias desaparecida algures na Galiza. Ajustes novos, diferenças antigas. E o fim? E o título? Ainda não sei  comos nem porquês - prefiro disdesfrutar o caminho para lá chegar.  

     

 

Então e tu, Ana Lima, o que andas a ler?

O mundo em que vivemos

José António Abreu, 29.08.13

Convém ter presente que em Portugal, como em muitos outros países, sempre ocorreram incêndios. Em 1980, por exemplo, arderam mais hectares do que em 2008 (44.251 contra 17.565). Mas é verdade que, ao longo das últimas duas décadas, a tendência foi de subida, tanto ao nível de número de incêndios (na década de 80 apenas em 1989 ocorreram mais de 10.000 enquanto na primeira década deste século apenas em 2008 o valor ficou abaixo de 20.000) como da área ardida (duas vezes acima dos 100.000 hectares na década de oitenta, quatro na de noventa, seis na de 2000), tendo-se registado picos de destruição em 2003 (recorde de área ardida: 425.839 ha) e 2005 (recorde de número de incêndios: 35.824 e segundo valor mais elevado de sempre de área ardida: 339.089 ha). Isto enquanto os meios de detecção e combate eram progressivamente reforçados e a formação dos bombeiros melhorada. Explicações para o aparente contra-senso? Ouve-se diariamente falar no interior cada vez mais desertificado, na alteração de espécies plantadas (com o crescimento das áreas de eucaliptal), nas florestas por limpar, em comportamentos negligentes. Serão factores importantes. Mas permitam-me acrescentar mais dois. O primeiro não ajudará a explicar o aumento (a  menos que se adopte uma perspectiva decididamente maquiavélica) mas talvez ajude a explicar a inexistência de diminuição. É tão politicamente incorrecto que, tivesse eu algum senso, esperaria pelo final da «época de fogos» (fantástica designação, que por um lado parece tentar empurrar os incêndios para uma normalidade similar à «época balnear» mas por outro contém um horror implícito, como que antecipando épocas ainda piores: a «época oficial das mortes na estrada», por exemplo, ou a «época dos afogamentos em massa») antes de o abordar, ou, se tivesse ainda um pouco mais de senso (o nível adequado às noções do politicamente correcto), nem sequer o abordaria. É, no entanto, muito simples: como noutras áreas, por incompetência e por interesses, do investimento efectuado nem sempre terão saído os resultados esperados. A prevenção dos incêndios e o combate aos mesmos são uma realidade com bastante que elogiar (acima de tudo, a abnegação de tantos voluntários) mas também são um negócio, um emprego para muita gente e um universo de hierarquias, jogos de poder, interesses cruzados e aparências. Nem sempre se terá comprado o equipamento mais adequado. Nem sempre se terá ministrado a formação mais útil. Nem sempre a competência terá sido premiada. Nem sempre o dinheiro terá chegado onde era suposto chegar. Nem sempre se terá funcionado de acordo com regras de sensatez financeira e operacional. Adoptando a tal visão maquiavélica, talvez até se possa acrescentar que nem sempre terá existido interesse em que os incêndios deixassem de assustar a população e, mais importante (mas uma coisa decorre da outra), os responsáveis políticos que assinam a maioria dos cheques (passatempo para um fã de teorias de conspiração: tentar estabelecer uma relação entre as épocas de cortes orçamentais e o valor da área ardida).

O segundo factor gera menos polémica. Muita gente já o referiu mas (desta feita, compreensivelmente) também é pouco abordado nos meios de comunicação social. Trata-se da histeria televisiva, inexistente há vinte e tal anos. Do mesmo modo que noticiar suicídios tende a fazer com que ocorram novos suicídios, o espectáculo televisivo das chamas, do fumo, do medo, da impotência, opera simultaneamente como prémio e incentivo aos pirómanos.  Há pouco mais de vinte anos somente existia a RTP e os incêndios ocupavam dois ou três minutos de um noticiário que demorava meia hora. Há pouco mais de trinta, as chamas nem sequer tinham cor. Hoje, as televisões dedicam aos incêndios mais de meia hora de cada serviço noticioso (alongado para hora e meia) e mostram aos pirómanos, com som, cor, transpiração, desespero, a grandiosidade dos seus actos. O que fazer? A única solução credível passaria pela auto-regulação e isso significa que dificilmente algo mudará. Continuaremos lamentando e protestando, horrorizados (mas também mais do que ligeiramente fascinados), diante dos televisores. O mundo em que vivemos é o mundo em que vivemos.

Home sweet home

Ana Vidal, 29.08.13

 

Chego de fora mesmo a tempo de não precisar de me beliscar para saber que estou de volta a casa. Enquanto o país arde triste e realmente, no Chiado brinca-se aos fogos num simulacro comemorativo para turista ver, com figurantes e cheiro a fumo em spray. Enquanto morrem bombeiros e as populações se queixam de uma aflitiva falta de meios, corporações inteiras sobem e descem escadas de incêndio, de mangueira na mão, fingindo apagar um fogo inexistente. Diria o velho Camões, habituado aos lusos absurdos, que foi "um fogo que arde sem se ver". Digo eu, entre a estupefacção e a vergonha alheia, que isto é de um mau gosto atroz e de uma total falta de senso. E ainda falam da Cristina Espírito Santo.

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