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Delito de Opinião

O comentário da semana

Pedro Correia, 30.09.12

«Como Medina Carreira tem repisado, nós votamos em listas cozinhadas pelos aparelhos partidários, a nossa escolha não passa daí. Estamos à partida impossibilitados de saber quem nos representa.
E ainda há pouco veio no Jornal de Negócios um estudo sobre o que fazem os deputados, e seria de espantar se não fizéssemos já uma ideia de qual a situação (assim é apenas de confirmação) - é ver o que sobre este tema tem sido referido por Paulo Morais e a sua associação Transparência e Integridade...
Quanto à CdR [Constituição da República], é um texto longo, datado, que nos faz eleger directamente um Presidente da República que de pouco serve, e que pretende regular inumeráveis domínios, quando deveria ser apenas um apanhado de princípios fundamentais claros e aceites por todos. Não passa, assim, de um amontoado de palavras sem grande significado, e houve, do mesmo passo, o cuidado de lá meter expressões como "tendencialmente gratuito", que permitem discussões intermináveis e inconsequentes.
E depois passa-se que, nem submarinos, nem BPN, nem Freeport, nem Portucale, nem nada em que políticos e poderosos estejam metidos, se averigua e transita em julgado, condenando-se quem prevaricou e mandando em paz quem não o fez.
Resumindo, é um não acabar de vícios.»

 

Do nosso leitor Optimista. A propósito deste texto do Rui Rocha.

Politicamente correcto oblige

José António Abreu, 30.09.12

Na televisão, um comentador de corridas de automóveis refere-se a uma mulher como «piloto». Fico à espera de que alguém envie para lá uma mensagem de protesto e ele tenha de se retractar mas, talvez porque as mulheres não vêem corridas de automóveis, a coisa passa incólume. Não devia, porém: se um presidente do sexo perdão, do género feminino é agora uma presidenta, por maioria de razões uma rapariga que participa em corridas de automóveis tem de ser uma pilota.

SHUT THE F@#$K UP!

José Navarro de Andrade, 30.09.12

“Que a medida é extremamente inteligente, acho que é. Que os empresários que se apresentaram contra a medida são completamente ignorantes, não passariam do primeiro ano do meu curso na faculdade, isso não tenham dúvidas.”

António Borges, Vilamoura, 29-09-2012

 

“He has been a person who has been perhaps not particularly careful about his message discipline.”

Jakob Funk Kiekgaard, research fellow do Peterson Institute for International Economics, Washington, 17-11-2011

 

"I was present at a Borges briefing in Washington in late-September when he portrayed the euro area crisis in much more graphic terms than his new boss Christine Lagarde would have regarded as helpful."

Alex Brummer, Daily Mail, 17-11-2011

Grandes romances (4)

Pedro Correia, 30.09.12

 

SOMBRAS PROFUNDAS NUM SUL SEM SOL

Santuário, de William Faulkner

 

William Faulkner quis provar a si mesmo, no final da década de 20, que era capaz de escrever um romance policial. Deitou mãos à obra e bastaram-lhe quatro vertiginosos meses para concretizar o projecto. Concebera-o como outra espécie de desafio pessoal: uma ficção que contivesse como ingredientes tudo quanto conseguisse imaginar de mais sórdido e macabro.

Quando terminou, achou-se perante algo diferente do que havia imaginado: em vez de uma história com detectives, produzira aquilo que André Malraux viria a definir como uma "tragédia grega transplantada para o policial". Uma obra dura, intensa, capaz de esquadrinhar os mais negros recônditos da natureza humana - com os seus fantasmas, as suas obsessões, os seus traumas.

É uma obra que ilude todos os rótulos, espécie de cruzamento entre o realismo e o expressionismo, onde várias personagens surgem apenas esboçadas ou são configuradas como sombras espectrais. Existe um persistente lapso temporal entre a acção e os fragmentos dela que vão sendo transmitidos ao leitor, como se assinalassem a distância intransponível entre a literatura e a vida. E o próprio título do romance é ilusório: o Santuário aqui descrito é afinal um pequeno mundo de lassidão moral mal disfarçado pelas convenções sociais e pela letra da lei, sempre distorcida ao sabor das conveniências de ocasião.

Faulkner, apostado em profissionalizar-se como escritor, escrevera pouco antes O Som e a Fúria, em ambiência rural, e quis fazer algo completamente diferente - tanto ao nível do estilo como do tema. O cenário continua a ser o chamado 'Sul profundo' dos Estados Unidos (centrado na sua região natal do Mississípi, convertida literariamente no condado de Yoknapatawpha) mas aqui estamos num ambiente urbano - ou pelo menos contaminado pela cidade, enquanto palco simbólico da erosão dos padrões éticos. Sob o filtro deste "mestre da observação genuína e do conflito interior", como lhe chamou Allen Tate.

 

Significativamente, as primeiras páginas de Santuário (1931) decorrem de dia, sob o intenso clarão do sol, mas à medida que a acção se adensa tudo passa a acontecer em atmosfera nocturna. Tudo o quê? Mentira, contrafacção, crueldade, corrupção, traição, impotência, prostituição, piromania, racismo, alcoolismo, enforcamento, violação, assassínio, castração, incesto, linchamento: ingredientes descritos ou apenas sugeridos neste romance que o New York Times enalteceu como um "assombroso estudo sobre o triunfo do mal" em 1981, quando surgiu finalmente no prelo a versão original do romance, que o editor rejeitara por poder chocar as almas mais sensíveis. Faulkner reescreveu-o parcialmente, limando algumas arestas e esbatendo o protagonismo da figura central, Horace Benbow, um advogado destituído de coragem física e perturbado pela ambiguidade moral. Os capítulos iniciais do primeiro rascunho tinham uma óptica subjectiva: os factos eram transmitidos ao leitor pelo olhar de Horace.  

Apesar das mudanças - e das inúmeras gralhas tipográficas que foram perdurando de impressão em impressão e só vieram a ser definitivamente expurgadas em 1993 - Santuário impôs-se como um marco fundamental da ficção literária do século XX, contribuindo - a par de outros títulos, como Luz de Agosto, Absalão, Absalão e o já mencionado O Som e a Fúria - para a atribuição em 1949 do Nobel da Literatura a este descendente de uma próspera família de proprietários rurais condenada à pobreza endémica após a Guerra da Secessão (1861-65).

A arte narrativa teve nele um dos principais cultores de sempre. "Em todo o romance é a forma - o estilo em que está escrita e a arquitectura da narração - o que decide a riqueza ou a pobreza, a profundidade ou a superficialidade da história. Mas em romancistas como Faulkner a forma é algo tão visível, tão palpável na narração que faz as vezes de protagonista e actua como mais uma personagem de carne e osso ou figura como facto", observa justamente Vargas Llosa, outro galardoado com o Nobel, em La Verdad de las Mentiras.

 

O sortilégio da escrita de Faulkner resiste inclusive ao crivo implacável e arbitrário da tradução. Repare-se, a título de exemplo, numa cena capital, a da violação de Temple Drake (no capítulo 13 do romance, onde nada surge por acaso), em duas versões portuguesas de Santuário - ambas da Editorial Minerva.

A primeira, assinada por Marília de Vasconcelos, na colecção Capa Amarela (anos 50):

"Popeye virou-se e fitou-a. Baloiçou um pouco o revólver antes de o guardar no bolso, e encaminhou-se para Temple. Andava com passos silenciosos. A porta, aberta, escancarou-se e foi bater no umbral, também sem o menor ruído: dir-se-ia que as leis do som e do silêncio estavam invertidas."

A segunda, assinada por Fernanda Pinto Rodrigues, na colecção Minerva de Bolso (anos 70):

"Virou-se, olhou-a, agitou um momento a pistola antes de a guardar na algibeira e aproximou-se. Os seus passos não produziam nenhum som. A porta liberta do fecho abriu-se e bateu contra a ombreira, mas também não produziu nenhum som. Dir-se-ia que som e silêncio se tinham invertido."

A grande literatura é assim: surpreende e fascina em todas as épocas, em todos os idiomas, em qualquer versão. E não custa intuir quando estamos perante um romance de excepção, como sucede aqui: ao chegarmos ao fim, sabemos de antemão que jamais nos livraremos dele. Havemos de regressar a qualquer momento ao condado de Yoknapatawpha para reviver a magia do primeiro assombro. É uma ligação para a vida: estejamos onde estivermos, livros como este irão connosco.

 

Outros textos desta série:

O Velho e o Mar - Um homem destruído mas não vencido

O Poder e a Glória - Ler para crer

Mrs. Dalloway - Esplendor na relva

Sonhos e Comboios

José António Abreu, 30.09.12

Denis Johnson é menos conhecido do que outros escritores americanos actuais mas não devia sê-lo (tem companhia nesse clube: Norman Rush, por exemplo). Sonhos e Comboios é o segundo livro dele que leio, após o volume de contos Filho de Jesus, publicado há um par de anos pela Ahab (em Portugal está também editado Coluna de Fumo, vencedor do National Book Award em 2007, e, segundo parece, a Relógio d'Água prepara-se para lançar Anjos, o primeiro romance que publicou, em 1983). Se os contos de Filho de Jesus tinham uma demão de surrealismo, de realidade distorcida, esta pequena novela de oitenta páginas, não dispensando visões nem sonhos (aparecem logo no título, embora o sentido do original, Train Dreams, seja ligeiramente diferente do português), ancora-se acima de tudo num realismo seco, preciso, sem enfeites nem justificações excessivas, onde muitas personagens são delineadas em três ou quatro frases.

 

A história é simples: Robert Grainier, nascido provavelmente em 1886, no Utah ou talvez no Canadá, classificado como órfão apesar de ninguém saber realmente o que aconteceu aos seus pais, ganha a vida trabalhando primeiro nas obras que ajudam a levar a civilização ao interior americano e mais tarde, quando o corpo já não aguenta esforços físicos intensos, auxiliado por uma carroça e duas éguas, como transportador de pessoas e objectos. Grainier é um homem solitário e de poucas falas, que vive numa cabana isolada na floresta. Tem arrependimentos: uma vez participou na tentativa de linchamento de um chinês, de outra deixou morrer um homem ferido que encontrou nas montanhas, após este lhe contar como, anos antes, abusara de uma sobrinha de doze anos que o irmão dele acabara por matar à paulada depois de a saber grávida. Grainier pensa que estes actos talvez expliquem a dureza do acontecimento mais importante da sua vida; o acontecimento que lhe levou mulher e filha e desencadeou as tais visões. Tirando isso, a sua vida parece nada ter de extraordinário. Como, de resto, o livro. Num primeira análise, Sonhos e Comboios é apenas o relato da vida de um homem simples que, apesar de ter chegado a ver Elvis Presley de relance (à porta da sua carruagem de comboio privativa), lidou sempre com pessoas tão simples e anónimas quanto ele, ainda que ocasionalmente alvo de acontecimentos peculiares, como o fulano que foi baleado pelo próprio cão; o relato da vida de um homem que nunca chegou a ver o mar e andou de avião apenas uma vez, que não conheceu os pais e teve relações sexuais com uma única mulher. E, todavia, sem que o leitor perceba bem como, é também um livro que acaba por espelhar (ou talvez exsudar) muitas das alterações de quase um século de história norte-americana. Oitenta páginas sublimes.

 

Nota: a ortografia é pré-AO (ou não teria comprado a edição nacional).

 

Denis Johnson, Sonhos e Comboios.

Edição Relógio d'Água, tradução de José Miguel Silva.

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