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Delito de Opinião

Passado presente (CCLV)

João Carvalho, 31.08.10

 

Rover 2000 (Reino Unido, anos 60)

 

Nota — Este post marca o dia em que a Câmara Municipal de Lisboa fechou de vez o Museu Fernando Pessa do Automóvel Antigo, iniciado com a oferta do saudoso Fernando Pessa do seu velho Rover 2000, que contou com a contribuição de alguns amigos, que a Câmara de Lisboa assumiu (primeiro com João Soares e depois com Santana Lopes) e ao qual nunca chegou a dar verdadeira dignidade. Não passou de um nado-morto adiado.

Os filmes da minha vida (13)

Pedro Correia, 31.08.10

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TAXI DRIVER:

NO CORAÇÃO DAS TREVAS

 

Qual é a diferença entre um vilão e um herói num mundo onde todas as barreiras morais foram transpostas e as tradicionais fronteiras entre o bem e o mal estão diluídas? Esta é a pergunta-chave de Taxi Driver, um filme que não cessa de nos perseguir noite fora, anos fora. Vê-lo uma vez é vê-lo para sempre: jamais nos libertaremos daquela atmosfera viscosa de Nova Iorque, daquelas ruas onde se exibe a devassidão, daqueles vidros embaciados que nos transmitem a imagem de uma cidade que é a antítese perfeita de um bilhete postal.

Viajamos num táxi conduzido por Travis Bickle, ex-veterano de guerra que combate a insónia de mãos no volante enquanto anseia por um dilúvio que «lave toda a porcaria das ruas»

Nunca Nova Iorque pareceu tão irreal como neste filme só aparentemente realista: porque afinal a vemos sempre pelo olhar desfocado dum ex-fuzileiro de 26 anos que guia sem destino ao som da banda sonora de Bernard Herrmann - compositor de Alfred Hitchcock -, falecido horas após concluir esta magnífica partitura que lhe serviu de testamento.

 

«Não consigo dormir», diz o taxi driver que Robert de Niro interpreta com uma intensidade quase dolorosa, como se fosse o último papel da sua vida.

Perguntam-lhe por habilitações literárias. «Algumas.»

Tem a folha limpa? «Tão limpa como a minha consciência.»

Horário? Qualquer serve: das seis da tarde às seis da manhã, «às vezes até às oito». Seis dias por semana, «às vezes sete».

 

A noite funciona como cenário quase exclusivo desta espécie de western urbano a que só a fugaz aparição luminosa de Betsy (Cybill Shepherd) confere um toque de claridade. Travis vê-a vestida de branco, «pura como um anjo», na sede de campanha do senador Charles Palantine, candidato à Casa Branca com o demagógico slogan «Nós somos o povo». Ele acabará por ser um dos seus passageiros ocasionais. «Aprendi mais sobre este país a andar de táxi do que em todas as limusinas», garante Palantine, que há-de conseguir a nomeação.

Passageiro bem diferente é o marido enganado, interpretado pelo próprio realizador, Martin Scorsese, noutro momento inesquecível deste filme: fá-lo estacionar à porta de um prédio onde está a mulher, que o trai «com um preto», e revela que há-de matá-la com uma Magnum 44.

«Esgoto a céu aberto», a Nova Iorque de Taxi Driver.

 

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Outro motorista, mais cínico e mais sábio, dá-lhe uma saraivada de bons conselhos: «Sai, embebeda-te, leva uma mulher para a cama. Não te rales tanto. Descontrai.» 

Mas este é um idioma estranho a Travis, que deixou uma parte de si mesmo no Vietname e conserva apenas uma memória distante dos pais, a quem envia um lacónico postal sem remetente, esquecido já das datas de todos os aniversários.

Nós vamos com ele, vendo os néons faiscar à nossa volta na cidade que nunca dorme.

É uma viagem ao coração das trevas, onde não se vislumbra o povo do demagogo Balantine: só «chulos, drogados, prostitutas, travestis», exploradores de carne humana. Travis Bickle, "misto de São Paulo e Charles Manson" (a definição é do próprio Scorsese), vê ali, quarteirão após quarteirão, o sucedâneo dos vietcong que não conseguiu vencer na selva da Indochina. Rapa o cabelo, arma-se até aos dentes, mergulha numa orgia de violência contra uma guerrilha imaginária, confundindo as ruas do Bronx com o trilho de Ho Chi Minh. Reserva a última bala para si próprio, mas por um capricho do acaso a arma não dispara.

É quanto basta para a imprensa o proclamar herói: ganha direito aos 15 minutos de fama que nunca ambicionou. «Os jornais têm a mania de exagerar», diz para Betsy na última vez que falam antes do desencontro definitivo.

Taxi Driver jamais poderia ter um happy ending: este é o mais inclemente, perturbante e devastador filme que conheço sobre a solidão e a absoluta impossibilidade de se ser feliz.

 

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Taxi Driver, 1976. Realizador: Martin Scorsese. Principais intérpretes: Robert de Niro, Cybill Shepherd, Jodie Foster, Peter Boyle, Harvey Keitel, Albert Brooks.

Convidado: JOÃO TÁVORA

Pedro Correia, 31.08.10

 

Uma parábola na estação tola

 

Tramado é que esta ingrata civilização do bem-estar e do consumo desempregou os nossos corpinhos feitos para malhar na terra, para caçar, subir às árvores ou para alvorar a fugir dalgum animal selvagem mas deixou-nos um dilacerante apetite de quem precisa de armazenar calorias para uma semana de carência. Nesta cultura de sofreguidão hedonista somos desafiados a corresponder ao primeiro assomo de apetite (não me refiro apenas à comida) e tratar o nosso corpo como tratamos o resto da natureza, num total desprezo pela sua ecologia: são os efeitos colaterais da democratização da alarvidade.

 

 

Aqui chegados, todos conhecemos almas inquietas com a sua decadência física, que a partir dos quarenta-e-tal anos se entretêm em dietas, ginásticas passivas e outros exercícios sem esforço que o dinheiro possa comprar. As mulheres são vítimas privilegiadas desta ilusão: começam cedo no escritório com garrafinhas de água e golinhos de cinco em cinco minutos para iludir o apetite e exercitar a bexiga, um disparate que resulta num corrupio constante, um ver-se-te-avias entre o seu posto de trabalho e a retrete. Perante a ausência de resultados, começa a fase dos chás verdes, bruxarias e outras mezinhas de ervanária: inicia-se assim um desaguisado colateral com os intestinos até estes se tornarem tão preguiçosos como a dona. Passam-se anos nestes rituais, com uma vida cada vez mais próspera e sedentária, num desafio crescente com o espelho e a ingrata balança, até chegar a fase desesperada. Esta surge na sequência duma visita a um dietista famoso ou dica duma amiga, e é constituída por um metódico programa de ingestão de comprimidos coloridos: cada vez mais nevrótica, entra numa espiral de euforia, perde o apetite, a calma, e uns gramas até cair numa depressão depois duma violenta disputa com o cônjuge inocente.

Tudo se irá resolver com uma semana a chocolates e um programa de fim-de-semana de reconciliação com o marido num hotel com SPA e restaurante gourmet. Assim se recuperam todos os gramas e mais uns quilinhos optando então a dondoca por mudar de vida, queimar incenso e passar a vestir balandraus. A moral da história é que as aldrabices não funcionam: não há fuga possível, nem caminho fácil entre a mediocridade e o sucesso.

É irónico como nesta sociedade que venera o corpo e as aparências não haja parábola mais eficaz sobre as virtudes do mérito e do prazer diferido do que a da forma física. Tal como na escola só se aprende com estudo e empenho, tal como a riqueza só é criada com esforço e trabalho, a partir duma certa idade, a forma física depende fatalmente da austeridade alimentar e de muito, muito, exercício físico. Quem se preocupa com o implacável efeito da gravidade nos seus músculos e outros apêndices, está condenado a trabalhar e suar o corpinho, semana após semana, mês após mês, ano após ano, com muita perseverança e desapego, que o resto vem com as endorfinas e mais algum desapego; afinal, o mais importante na vida nem sequer é isso!

 

Nota: qualquer semelhança com factos ou pessoas reais é mera coincidência.

 

João Távora

Agosto casamenteiro (15)

João Carvalho, 31.08.10

Este é o bolo certo para um casamento à antiga, porque ninguém acredita que o noivo não bebeu para conduzir. Já o pai e, antes dele, o avô tinham feito o mesmo. Outros tempos.

 

Termina assim esta série, que percorreu a segunda metade de Agosto, um mês muito dado a casamentos pela visita dos portugueses emigrados que vêm às origens e juntam a família para formalizar os enlaces. Isto numa altura em que a nossa emigração tem andado a crescer desmesuradamente pelos piores motivos: sobrevivência, descrédito, falta de esperança, etc.

Os subúrbios

João Campos, 31.08.10

 

Já que, perante isto, isto e isto, parece-me necessário alguém fazer o papel de advogado do diabo, faço-o eu: o novo álbum dos Arcade Fire, The Suburbs, é muito bom. Sem ironias - é mesmo muito bom. Como disse lá no jardim há coisa de um mês, estranhei à primeira, rendi-me à segunda. Não o considero inferior ao Neon Bible. Dia 18 de Novembro comprovamos ao vivo. De resto, tenho um palpite: os Arcade Fire vão ser a próxima banda a sofrer o "síndrome Muse".

 

(E, já agora, o melhor disco dos Radiohead é o Amnesiac. Também sem ironia.)

Ler

Pedro Correia, 30.08.10

Para os comunistas recordarem em 2011... Do Emídio Fernando, no Correio Preto.

Os idiotas. Do Tiago Moreira Ramalho, n' A Douta Ignorância.

Pode lá haver combate mais justo? Do Rui Bebiano, n' A Terceira Noite.

Um caldeirão de Freud. De Miguel Serras Pereira, no Vias de Facto.

Alá, Deus, Javeh. Do Francisco José Viegas, n' A Origem das Espécies.

Tal como nos filmes. Do Bruno Vieira Amaral, n' A Douta Ignorância.

A tecnofobia. Do Luís Naves, no Emoções Básicas.

Num cinema perto de si. Do António Figueira, no Albergue Espanhol.

A entrevista

Pedro Correia, 30.08.10

 

- Esta é a sua primeira entrevista como candidato à Presidência. Pretendemos saber um pouco mais a seu respeito.

- Boa noite. Portanto os trabalhadores portanto explorados portanto por este governo de direita. Nós defendemos...

- Não pretendíamos falar muito de política. Para já, só queríamos saber um pouco de si.

- Defendemos a mudança da política portanto contra o governo de direita portanto que explora os trabalhadores.

- Mas os portugueses não o conhecem. Quem é o senhor afinal?

- Um comunista portanto integrado no colectivo portanto nós pensamos que estas políticas de direita portanto só prejudicam os trabalhadores.

- É casado? Tem filhos?

- Portanto nós lançámos esta candidatura para fazer a diferença portanto o que importa é alterar a política...

- Desculpe, mas não respondeu à minha pergunta. Gostava de saber se é casado e tem filhos.

- Hum... Vivo em união de facto e tenho duas filhas portanto a nossa intenção com esta candidatura é defender os trabalhadores...

- E nos tempos livres? O que faz quando não exerce actividade política?

- Sempre ao serviço do povo trabalhador portanto o colectivo decidiu apresentar esta candidatura...

- Desculpe, não está a responder ao que lhe perguntei. Como ocupa os seus tempos livres?

- Hum... No contacto com a natureza portanto há que pôr fim portanto a esta política de direita que já dura há mais de trinta anos e portanto de exploração das classes trabalhadoras...

- E de onde é natural?

- Nós defendemos portanto uma verdadeira política de esquerda...

- Desculpe, mas não está a responder. Pretendia saber onde nasceu.

- Hum... Nasci numa terra da Beira onde vou de vez em quando portanto com esta política de direita...

- E gosta de ler? Lê nos tempos livres?

- Nós pretendemos que esta candidatura portanto esteja ao serviço das classes trabalhadoras e do povo português portanto contra o grande capital monopolista...

- Desculpe, mas não me respondeu. Perguntei-lhe que livros costumava ler.

- Hum... Leio ensaios políticos portanto nós exigimos o fim desta política de direita...

- E não lê romances?

- O PS é igual ao PSD portanto e ao CDS na política de direita portanto contra os trabalhadores...

- Desculpe, não me respondeu. Costuma ler romances?

- Hum... Já li romances de José Saramago e Álvaro Cunhal nós pretendemos...

- Mas só lê autores comunistas?

- Uma candidatura portanto que esteja mesmo ao serviço dos trabalhadores...

- Desculpe, mas não me respondeu. Só lê autores que sejam comunistas?

- Hum... Também já li portanto autores de outras tendências mas nós portanto lançámos esta candidatura para que o povo português portanto esteja representado na Presidência da República...

- Para finalizar: a Coreia do Norte é uma democracia?

- Os trabalhadores... contra o governo de direita... nós... portanto... portanto... portanto... portanto... 

Convidado: JOSÉ SIMÕES

Pedro Correia, 30.08.10

 

Frente de incêndio

 

Dizia um velhote na televisão, a ver a vida a andar para trás à frente da frente de incêndio que, “a minha mata está limpa, limpo-a todos os anos, a do Estado não”. “Porquê?”- perguntava o atrapalhador de serviço aos telejornais – “não sei… nós não mandamos no Estado, o Estado é que manda em nós…”, fazendo com isto as delícias dos blasfemos e insurgentes e outros liberalizadores económicos, e só económicos, porque de costumes estamos liberalizados até demais. Toca pois a privatizar as matas e as florestas do Estado porque assim ainda alguém as limpa. Duas vezes mas limpa, e a primeira a limpar é logo do património comum herdado de centenas de anos de história. Wrong answer. Nós é que mandamos no Estado, assim uma espécie de Luís XIV alargado e democratizado: o Estado somos nós. E esta é a pior frente de incêndio, a da submissão e do medo respeitoso, e que consome há muuuuuitos anos  a alma deste povo com várias frentes conjugadas numa só, e que aproveita aqueles que a pretexto da rentabilização económica e da creação (assim mesmo, com “e”) de riqueza e da segurança das populações e das aldeias ensaiam um fast forward a uma espécie de feudalismo século XXI.

 

José Simões

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