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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (9)

Pedro Correia, 02.08.10

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AS VINHAS DA IRA:

SOMOS PARCELAS DE UMA ALMA MAIS VASTA

 

O realismo social costuma funcionar com personagens-tipo - figuras modelares num determinado contexto histórico e político mas em regra destituídas de espessura psicológica. O que John Ford consegue nesta sua magnífica adaptação a cinema do romance mais célebre de John Steinbeck é inverter esse estereótipo: As Vinhas da Ira oferece-nos uma galeria riquíssima de personagens, bem demonstrativas de um período dramático da história dos Estados Unidos, sem deixar de ser, simultaneamente, um poderoso libelo contra a injustiça social.

É um filme povoado de grandes planos de rostos quase espectrais, enquadrados na fabulosa fotografia de Gregg Toland. «Não passo de um fantasma», diz-nos logo no início Murley Graves, um desses pequenos agricultores rendeiros do Oklahoma forçados a abandonar as terras devido à inclemência da natureza e sobretudo à impiedosa ganância dos grandes empresários agrícolas e das poderosas instituições bancárias que ditavam as regras nessa América mergulhada nos anos da Depressão.

As Vinhas da Ira começa com a emblemática imagem de um homem solitário a caminhar ao longo de uma recta interminável. É Tom Joad, a figura central do filme - o papel da vida de Henry Fonda. Sem terra nem lar, a família Joad, arrancada às raízes, busca uma nova vida na Califórnia, atravessando os estados do Oklahoma, Novo México e Arizona. O avô morre pelo caminho, a avó também. O cunhado de Tom abandona a mulher grávida. E o sonho de uma vida próspera na Califórnia revela-se afinal um pesadelo: ali acorrem todos os deserdados do país. 

 

 

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Ford povoa o filme de momentos memoráveis. A mãe de Tom, sozinha no quarto antes da viagem, a desfazer-se de algumas recordações de toda a vida. O pai a implorar um pão num ocioso café à beira da estrada. A chegada ao acampamento californiano, cheio de crianças com fome. O ex-pregador Casy a explicar a Tom por que motivo mudou de vida: «Um pregador precisa de ter certezas. Eu não as tenho. Interrogo-me.»

Mas a mais inesquecível das cenas é a da despedida de Tom, procurado pela polícia, prestes a ter de sair de casa para sempre, regressando à vida errante que verdadeiramente nunca abandonou. Prepara a mochila no silêncio da noite, beija o pai adormecido. Ouve-se ao longe o silvo de um comboio - símbolo da partida iminente. Mas afinal a mãe está acordada: «Não te despedes?» Segue-se um breve diálogo, a meia-voz, feito tanto de palavras como de olhares. Sem artifícios, sem melodrama.

«Não temos um alma só nossa. Cada um de nós é apenas uma parcela de uma alma mais vasta, que é de todos», diz Tom. Anunciando à mãe o seu projecto de vida: «Onde houver uma luta para os famintos poderem comer, estarei lá. Onde houver um polícia a agredir alguém, estarei lá.» Olha de baixo para cima enquanto fala. Como se estivesse, inconscientemente, a pedir protecção divina para ajudar os seus semelhantes a escapar ao inferno na terra.

I'll be there. Filmada por John Ford, a saga de Tom Joad ganha asas, transcende o contexto histórico em que se situa, adquire um simbolismo universal que supera qualquer rótulo. Somos parcelas de uma alma mais vasta.

 

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As Vinhas da Ira (The Grapes of Wrath, 1940). Realizador: John Ford. Principais intérpretes: Henry Fonda, Jane Darwell, John Carradine, Russell Simpson, Charley Grapewin, John Qualen

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