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Delito de Opinião

Os filmes da minha vida (8)

Pedro Correia, 26.07.10

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LAURA:

O AMOR EM EXCESSO PODE MATAR

 

Há filmes que nos tocam desde o primeiro momento. Basta uma frase.

O sortilégio de Laura começa logo na frase inicial: «Jamais esquecerei o fim de semana em que Laura morreu. Não me lembro de um dia tão quente. Senti-me o único homem em Nova Iorque.» É proferida por uma voz off – a de Waldo Lydecker (Clifton Webb), famoso colunista social, habituado a construir e arruinar reputações. Somos assim logo transportados para um enigma dentro da labiríntica mente de Waldo: quem matou Laura Hunt?

O que só saberemos mais tarde é que Laura – a mulher que todos cobiçam, ao som da partitura hipnótica de David Raskin, é uma criação de Waldo. Não existia antes dele, como o ser que deslumbraria as noites nova-iorquinas, e provavelmente seria incapaz de lhe sobreviver.

Neste filme de constantes trocas de identidades, onde todas as aparências iludem, Laura é tanto mais real quanto surge exposta num retrato que domina o salão do apartamento onde morou. É pela mulher que contempla neste quadro que o tenente da brigada de homicídios Mark McPherson (Dana Andrews) se deixa arrebatar em noites de insónia regadas a scotch barato. Logo ele, o homem que deixou há muito de acreditar no amor. Quando Waldo lhe pergunta se já esteve apaixonado, ele responde: «Uma vez, em Washington Heifhts, uma tipa conseguiu que eu lhe oferecesse uma pele de raposa.» 


Um insólito clima de necrofilia percorre este filme de Otto Preminger – obra-prima do noir, o género cinematográfico que melhor desvenda a alma humana.

Numa obsessiva peregrinação nocturna pelo quarto que Laura deixou vazio, Mark lê o diário dela, cheira o frasco de perfume dela, contempla os vestidos dela. E ao fechar as portas do guarda-roupa vê com espanto a sua própria imagem reflectida no espelho. Percebemos de imediato que mal se reconhece: está apaixonado por um cadáver.

 

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Das sombras nocturnas de Nova Iorque emergem figuras que se vão iluminando.

Waldo, o homem que escreve «com pena de pato embebida em veneno». Shelby Carpenter, o galã com voz de veludo que passa cheques sem cobertura enquanto proclama: «Posso tolerar uma mancha no meu carácter mas não no meu fato.» A tia de Laura, incapaz de suportar a ideia de ver a sobrinha casada com Shelby. E Mark, que conduz o inquérito com a raiva surda de um amante despeitado. Como se soubesse de cor o poema que Waldo declama no seu programa radiofónico: «O amor estende-se para além das trevas da morte.»

A paixão partilhada por Laura – deslumbrante Gene Tierney, escolha perfeita para este papel – traz à tona as piores facetas dos homens que se deixam sucumbir pelo seu feitiço. De tal maneira que saber quem a matou passa a ser a questão que menos interessa perante a certeza de que todos seriam capazes de matar por ela. Incluindo o polícia que se perdeu de fascínio pelo seu retrato.
«O homem mata o que ama», dizia Oscar Wilde. O amor em excesso pode ser fatal. E a ilusão do amor também.

 

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Laura (1944). Realizador: Otto Preminger. Principais intérpretes: Gene Tierney, Dana Andrews, Clifton Webb, Vincent Price, Judith Anderson

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